Atores baianos falam sobre a participação e representatividade na dramaturgia e especialistas comentam a importância do gênero na cultura brasileira e do estado
O dia 21 de dezembro de 1951 representou um marco para a história da televisão brasileira, data esta em que foi ao ar o primeiro capítulo da primeira telenovela do país: “Sua Vida me Pertence”.
Ainda sem muitos detalhes como as obras que conhecemos atualmente, a TV Tupi exibiu em sua programação uma novela ao vivo, com capítulos de vinte minutos, escrita pelo pioneiro Wálter Forster.
Na época, eram exibidos dois capítulos por semana, às terças e quintas-feiras. Esse modelo de exibição só foi reformulado em 1963, com a exibição de “2-5499 Ocupado”, da extinta TV Excelsior, quando a trama estreou com a exibição diária de segunda-feira a sábado. Inclusive, o primeiro beijo da televisão brasileira aconteceu nesta novela entre os protagonistas interpretados por Wálter Forster e Vida Alves
O gênero, por normalmente apresentar histórias do cotidiano, foi caindo no gosto popular e fazendo com que as tramas se expandissem em diversos aspectos, como produção, exportação, audiência, dentre outros.
As obras ganham histórias mais densas e passam a tocar em assuntos de relevância social. O autor baiano, Dias Gomes, com a novela “Verão Vermelho”, em 1969, apresentou elementos da cultura e a abordagem do preconceito racial, do divórcio e do coronelismo, para criticar o Regime Militar vigente no país na época.
Ditadura e novelas
O período da Ditadura Militar no Brasil, entre 1964 e 1985, foi um momento complexo para os folhetins, que passaram a sofrer forte censura do regime militar. Sendo as novelas um produto cultural que chegava diariamente a milhões de lares todas as noites, o governo mantinha a marcação cerrada com os autores e as redes de TV.
Conhecida pela versão de sucesso exibida em 1985, “Roque Santeiro” teve sua primeira versão, no ano de 1975, cancelada às vésperas da estreia. Com 50 capítulos escritos, 30 gravados e 10 já editados, a novela foi proibida pelo Governo Militar na noite de sua estreia.
No mesmo dia, durante a exibição do Jornal Nacional, o apresentador Cid Moreira, anunciou que a telenovela do autor baiano, Dias Gomes, não estrearia. Na ocasião, foi lida a seguinte justificativa: “A novela contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja”.
“Fogo Sobre Pedra”, “Escalada”, “Selva de Pedra”, “O Casarão”, “Brilhante”, “Duas Vidas” e “O Bem-Amado” foram algumas das tramas que precisaram se adequar devido às exigências do Governo Militar.
Sucesso e exportação
Com o passar do tempo, as novelas ganharam novas formas de apresentar a realidade do povo brasileiro, o que levou o país a se tornar referência no gênero em todo o mundo. “Avenida Brasil”, “Totalmente Demais” e “Escrava Isaura” são algumas das produções que levaram o nome das terras tupiniquins mundo afora.
“Escrava Isaura”, a história da escrava branca, fez tanto sucesso nas exibições internacionais, que chegou a ser vendida para mais de 100 países, sendo dublada para vários idiomas.
Os atores rodaram o mundo para promover a novela. O último capítulo foi tão impactante que parou a Guerra da Croácia. Em Cuba, o governo suspendeu o racionamento de energia elétrica para que a população acompanhasse a novela. Já na Bósnia, durante a guerra contra a Sérvia, os dois exércitos deram uma trégua para assistir aos capítulos.
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Artistas baianos nas tramas
Berço de grandes talentos, a Bahia já formou atores e atrizes de excelência. Um deles é o ator Lucas Leto, de Salvador, que mostrou o seu talento ao dar vida ao personagem Waguinho na trama da Rede Globo, ‘Bom Sucesso’.
Segundo o ator, no momento que foi surpreendido com o convite para o teste da telenovela, estava em São Paulo trabalhando em dois projetos: Turma da Mônica Jovem e o musical Dona Ivone Lara.
“
Depois de um caminho no teatro, eu fui convidado para fazer teste para novela e fui aprovado na primeira. Senti medo dessa linguagem, que era nova pra mim, mas logo me apaixonei e me senti pronto para trabalhar na TV”, conta o ator.
“Começar defendendo um personagem complexo como o Waguinho poderia parecer assustador, mas as pessoas começaram a se apaixonar pelo meu personagem. Eu me dediquei muito e também devo isso à equipe e aos atores experientes que eu observava”, relata.
Ao contrário do jovem, que teve uma entrada receptiva no mundo das produções audiovisuais em seu primeiro personagem, o ator baiano Jackson Costa, natural de Itabuna, conta ter sofrido preconceito por ser nordestino quando começou a trabalhar nas tramas globais em 1991, aos 24 anos.
“O preconceito com o nordestino era maior do que é hoje. Sofri muito na pele, sem demonstração. Depois fui admirado e cortejado pela Globo e por muitos globais, pelo meu desempenho em trabalhos sob a direção de Luiz Fernando Carvalho”, cita o ator.
“Hoje já é melhor o mercado para atores baianos e nordestinos, mas ainda vejo preconceito. Basta ver que as novelas nordestinas são protagonizadas por atores do sul e sudeste, enquanto os nordestinos, que obviamente têm mais propriedade para interpretar a sua cultura, são meros coadjuvantes”, completa Costa.
Com papéis marcantes em tramas como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “Gabriela” e muitas outras, Jackson Costa se encantou pela arte desde criança. O amor pelo teatro começou cedo, visto que com oito anos já fazia parte da profissão.
Com o teatro, Costa conta que passou a usar “a máscara das personagens para desmascarar a sociedade”. “É também o meu instrumento de desenvolvimento, com o qual me disponho a tirar as máscaras que me envolvem”, revela o ator.
Representação da Bahia nas telenovelas
As telenovelas têm uma grande importância na representatividade de baianos na arte e com as tramas. Diversos artistas ganham cada vez mais espaços nas telas, exibindo e representando a cultura da Bahia, principalmente por ser um estado com maior concentração de negros e que carrega grandes feitos em sua história.
Dentre alguns baianos que ganharam e vem ganhando destaque nas narrativas televisivas estão: Chica Xavier, Othon Bastos, Oswaldo Mil, Jackson Costa, Regina Dourado, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Fabrício Boliveira, Frank Menezes, Luís Miranda, Daniel Boaventura, João Miguel, Fábio Lago, Érico Brás, Laila Garin e outros.
Segundo a doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporânea, Thaiane Machado, “os atores baianos são respeitados em todos os segmentos do audiovisual”
No entanto, Machado relata que há um desafio para o avanço da representação dos atores nas tramas: “A questão é como conseguir ultrapassar a barreira de artistas que estão mais próximos de onde a indústria acontece, que é no eixo Rio-São Paulo”, declara.
Antigamente, os artistas baianos costumavam ser representados em telenovelas com papéis inferiores ou pejorativos, como de ladrão, escravo, empregado e outros.
Contudo, segundo a especialista “houve um avanço nas discussões sobre mais atores negros e nordestinos nas obras e, obviamente, isso fez mudar o modo como as atuações desses atores passaram a ter um caminho de um ator profissional, como qualquer outro”.
De acordo com a pesquisadora, nesses 70 anos da história da telenovela, há atualmente um avanço no processo de inserção da Bahia nos enredos.
“Esse processo tem uma crescente. Quando a gente olha “Segundo Sol” (2018), mesmo com os problemas de escalação branca, ainda sim coloca a Bahia em outro patamar. Ou uma série como “Ó Paí Ó” sendo exibida em TV aberta, isso tudo representa os lugares ocupados pelos baianos”, afirma Machado.
Pandemia e o novo cenário das telenovelas
As produções de telenovelas foram, assim como diversas áreas, impactadas pela pandemia de Covid-19. Em março de 2020, o período em que o país viveu o colapso pandêmico, as gravações precisaram ser interrompidas, fazendo com que as emissoras nacionais transmitissem reprises de novelas ou alterassem as suas programações na grade. Após um período com as reprises estratégicas e pontuais para o preenchimento de lacunas da programação das emissoras, os números e taxas do coronavírus começaram a cair a partir deste ano e o país começou a flexibilizar as medidas sanitárias de prevenção à doença. Com isso, as gravações das tramas voltaram, seguindo os protocolos sanitários.
Segundo o especialista em teledramaturgia, Nilson Xavier, com este retorno gradativo e inicial das novas produções, “a expectativa é que os trabalhos voltem ao normal, como eram antes da pandemia”. “Aliás, que a nossa vida volte a ser o que era, expectativa de todos nós”, reforça Xavier.
Em contrapartida, na medida em que a arte, como um todo, foi afetada pelas restrições da pandemia, a área artística proporcionou inúmeros benefícios para a sociedade durante o enfrentamento do contexto pandêmico, através de produções audiovisuais, músicas e outras.
“As pessoas foram obrigadas a ficar em casa, sem poder socializar. Só a arte poderia ajudar, e nisto nos agarramos, ainda que limitada, sem a possibilidade de presencialmente ir a um show, ao museu, teatro ou cinema, a um concerto, a uma exposição, a um programa de TV etc”, comenta Xavier.
Relação das telenovelas e o telespectador
Parte do mundo artístico, as telenovelas, em seus 70 anos de existência no Brasil, fazem parte da vida dos brasileiros de forma particular e, com a pandemia, muitos que não incluíam as tramas na rotina, passaram a acrescentá-las.
Durante todo esse período de existência das narrativas televisivas, muitas histórias de amor, comédias, tragédias e polêmicas foram retratadas, transmitindo a realidade da nossa sociedade e possibilitando debates sobre temas importantes para os seus telespectadores.
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Considerada uma “noveleira de plantão”, a telespectadora Viviane Falcão, estudante de geografia, acredita que a ficção tem essa capacidade de exibir a realidade, ao transmitir alguma informação que retrata uma mensagem importante e de conscientização para a sociedade.
Através dos enredos, a diversidade dos atores, como sotaques e culturas, são exibidas. Com isso, as histórias ganham ainda mais vida, atingindo públicos distintos, que se sentem representados. Essa mesma visão é compartilhada por Viviane, ao comentar sobre a visibilidade dos atores baianos nas tramas.
“Vejo que a cada dia há mais baianos nas telenovelas, e bons atores, que conseguem quebrar estereótipos enraizados nas telas quando se trata de pessoas e personagens baianos”, destaca.
Repórteres: David Cardoso, Gisele Souza, Júlia Stéfanie e Paloma Gonçalves
Revisão: Antônio Netto