Com mais de 30 museus, capital baiana peca na divulgação dos espaços, analisam o criador do “Guia do Soteropobretano” e o historiador Rafael Dantas
Cidade do Carnaval, da música, do multiculturalismo e também dos museus. Salvador, nos últimos tempos, vem ressignificando a importância das suas heranças históricas tanto para o público local, quanto para turistas.
Diferentemente do que foi observado por muito tempo no comportamento cultural de quem mora e visita a capital baiana, os museus vêm caindo no gosto do público e cada vez mais passam a fazer parte das programações de lazer, mas ainda falta muito para que esses espaços se tornem um “cartão-postal” da cidade.
Variedade de oferta
Quem assistiu a cena épica do atual prefeito de Salvador, Bruno Reis (DEM), e o ex-prefeito, ACM Neto (DEM), cantando o sucesso “Raiz de Todo Bem”, do cantor Saulo Fernandes, em pleno karaokê do Museu Cidade da Música, localizado na Praça Visconde de Cayru, no bairro do Comércio, entendeu que está na hora de passar a explorar esses espaços.
Outro local que vem despertando o interesse do público por essas ferramentas de cultura é a Casa do Carnaval, no bairro do Pelourinho, que conta de forma lúdica e interativa a história da maior festa de rua do planeta.
A Casa do Rio Vermelho, ou Casa de Jorge Amado, no bairro do Rio Vermelho, que abriga memórias incríveis e cruciais nos seus ambientes, espalhados por mais de dois mil metros quadrados, também é uma opção para quem gosta de ouvir uma boa história.
As mais de 30 horas de vídeos e projeções apresentadas no museu contam a vida de um dos mais famosos escritores brasileiros ao lado da sua esposa, e também escritora, Zélia Gattai.
Localizado no Forte Santa Maria, na Av. Sete de Setembro, no bairro da Barra, o Espaço de Fotografias Pierre Verger reúne cerca de quatro mil imagens divididas entre retratos de paisagens urbanas, cultos afro-brasileiros, interior da Bahia, cenas do cotidiano e fotografia contemporânea, que de forma dinâmica, traduz as origens do povo baiano.
Já no Espaço Carybé de Artes, situado no Forte São Diogo, na Praça Azevedo Fernandes, também na Barra, é possível se encantar com 300 obras de Hector Julio Páride Bernabó, mais conhecido como Carybé.
O interessante no local é também o fato das obras, ao contrário das ideias estigmatizadas que se tem de museu, não estarem nas paredes, mas sim no universo virtual criado para viver a experiência de visitar o lugar, que assim como os outros espaços supracitados, é administrado pela prefeitura de Salvador.
Mais opções
Na lista dos mais de 30 museus espalhados por Salvador, há ainda as opções gratuitas, entre elas, o Museu de Arte Moderna, localizado na Av. Contorno, Solar do Unhão; o Museu de Arte da Bahia, na Av. Sete de Setembro, no Corredor da Vitória; o Palacete das Artes, na Rua da Graça, na Graça; o Passeio Público, na Av. Sete de Setembro, Palácio da Aclamação e os museus Tempostal, Solar do Ferrão e Udo Knoff de Azulejaria, na Rua Gregório de Matos, no Pelourinho.
Todos administrados pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), do Governo do Estado.
Outras sugestões da lista são os museus do Sistema Universitário de Museus, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), entre eles, o Museu de Arte Sacra, Museu de História Natural; Museu de Arqueologia e Etnologia; o de Geociências (Mugeo); Museu Interativo de Anatomia Comparada; Museu Afro Brasileiro (Mafro) e o Museu Afro-Digital da Memória Africana e Afro Brasileira, ligado ao Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO).
Situado no Centro Histórico de Salvador, o Museu da Misericórdia é administrado pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia, e é um dos espaços culturais mais visitados do Estado, e contabilizava até mais de 40 mil visitantes por ano, antes de ser fechado temporariamente em razão da pandemia da Covid-19.
A variedade desses espaços culturais na capital baiana é ainda maior se levado em consideração o grande número de museus de administração própria, como o Museu Náutico da Bahia, no Forte de Santo Antônio da Barra, o Memorial de Irmã Dulce, no Bonfim, o Museu da Ordem Terceira de São Francisco e o Museu da Sexualidade, do Grupo Gay da Bahia (GGB), ambos no Pelourinho.
Só quem conhece é capaz de opinar
Considerado um visitante assíduo de espaços culturais de Salvador, o produtor de conteúdo e criador do Instagram “Guia de Sobrevivência do Soteropobretano“, Iuri Barreto, fica até indeciso para escolher o seu museu preferido da capital baiana.
“Estou em dúvida entre o Museu de Arte Moderna (MAM) e a Casa do Rio Vermelho, mas vou ficar com o MAM”, define o criador de conteúdo.
Apesar de ser um estimulador da cultura local, Barreto entende os motivos pelo qual público que mora e visita Salvador ainda não observa a capital baiana como uma cidade de cultura de museus, do jeito que ela deveria ser.
“Falta formar o público, falta uma política de formação de público. Acho que eventualmente a cidade tem muitos museus e, isso é um ponto positivo, mas, existe uma quantidade de museus que acabam pulverizando o público, dispersando a audiência. Então você tem museus muito bons, mas que as pessoas não se sentem tão estimuladas a visitar, porque elas não conhecem, não sabem do que tem nesses lugares”, explica Barreto.
“Você tem obras valiosas em um museu X, tem outra obra num museu Y, outra no museu Z e as pessoas acabam não criando o costume de visitar. Elas acabam não conhecendo as demais peças do acervo”, elenca Barreto.
Com ampla experiência profissional também no mercado turístico, Barreto faz uma análise do comportamento do público diante desses espaços.
“Particularmente, eu acho que falta vontade. As pessoas não vão simplesmente porque não gostam, não fazem tanta questão, tem um complexo de desvalorização do que é nosso em relação aos soteropolitanos. O turismo tem muita questão de marketing, de construção de produto. Então, as pessoas viajam para os lugares, visitam os pontos turísticos e nem mesmo sabem o porquê que estão visitando”, considera.
“Não é todo turista brasileiro, que, por exemplo, necessariamente gosta dos museus europeus. Eles vão porque têm que ir, e óbvio, o museu é tão famoso que acaba criando um imaginário na cabeça das pessoas e ela acaba querendo visitar também. Mas essas pessoas não visitam os museus da própria cidade, então ela gosta de museu, ou essa pessoa gosta dos cartões postais e pontos turísticos? Entende? Faz parte da construção do produto também”, atesta Barreto.
Para Barreto, a relação do público local e visitante de Salvador com os museus da cidade está associada a uma questão de marketing.
“As pessoas são muito movidas pelo que está na moda, que vem sendo muito falado nas redes sociais, elas são muito influenciadas pela agenda setting. Quando você tem destinos turísticos e produtos turísticos na boca do povo, isso mobiliza as pessoas a quererem conhecer também, por isso que o trabalho de divulgação é importante”, analisa.
“É aquela coisa, por exemplo, aqui na Bahia tem muita orla de litoral, aí Beyoncé vai visitar a praia da Boa Viagem, na Cidade Baixa, e ela fala que é a praia mais linda que já viu. O que vai acontecer com essa praia? Vai ter a especulação imobiliária, a disparada dos preços e todo mundo vai querer ir. É a melhor praia? Eu acho que é, mas vai muito mais do que as pessoas são movidas por esse tipo de cultura, faz parte”, exemplifica o criador de conteúdo.
Quase lá?
Mas então o que estaria faltando por parte dos soteropolitanos e de turistas para despertar de vez o interesse pelos museus da capital baiana? Iuri Barreto exemplifica o fato na prática.
“O Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Masp, é um museu maravilhoso. Mas ele tem toda uma mítica em torno dele, localizando-se na Av. Paulista, fez parte da transformação da cidade, é aquela coisa de que se você vai a São Paulo tem que visitar o Masp. A gente não tem essa percepção em Salvador”, pontua.
“Com relação aos turistas, isso está muito ligado ao tempo de estadia. A média da estadia desses visitantes em Salvador ainda está gravitando em quatro noites e quando se tem esse período acaba não priorizando os museus”, explica Barreto.
“A nossa capital tem dois perfis de turistas: o turista de massa, que compõem as classes D, C e B, são pessoas que vem de fora e acabam só ficando nas praias, pois geralmente essas pessoas vêm de cidades onde não tem mar e elas vem para o Nordeste com esse objetivo mesmo; e tem o outro turista que é mais antropológico, que curte de fato viver a cidade, gosta da identidade do lugar, mas essa parcela é mínima”, complementa o criador do “Guia de Sobrevivência do Soteropobretano”.
Fica a dica
À reportagem, Barreto deu dicas de museus de Salvador que moradores e turistas não devem deixar de visitar.
“Falando de obras, acervos, salas que todo mundo deveria conhecer: Sala Carybé, imperdível, com os orixás de Carybé; no Pelourinho, museu afro-brasileiro. Tente passar uma tarde na casa do Rio vermelho, faz parte da experiência. Pôr do sol no MAM; e ver as projeções mapeadas no Forte São Diogo, no espaço Carybé. Se o turista tiver pouco tempo em Salvador, visitando esses museus, já consegue pegar um pouco da cultura da cidade”, orienta Barreto.
Perspectiva histórica
Quem também reforça a importância e o significado dos museus para uma cidade como Salvador é o historiador Rafael Dantas.
“Cada museu, cada espaço que guarda a memória de um lugar, é importantíssimo para a gente compreender justamente esses panoramas de cada época. Os museus da cidade do Salvador são justamente recheados desses momentos, dessas peças, desses acervos que ajudam a compreender como era a cidade em épocas passadas. Então, perceber toda sua importância, preservar, criar canais de incentivo e valorização, faz parte de todo o processo de incentivo a guardar a memória de um lugar”, explica Dantas.
“Estamos falando de pertencimento, estamos falando de identidade, principalmente um lugar como Salvador, que foi durante mais de 300 anos a sede do poder político administrativo do contexto da América portuguesa no Brasil, imagina a riqueza que os nossos espaços, nossos museus e arquivos possuem nesse sentido”, completa.
Dantas acredita ainda que Salvador é uma cidade de cultura de turismo de museus, contudo, reconhece que a capital baiana carece de ser valorizada neste contexto.
“Na verdade, Salvador, sim, se destaca no contexto de uma cidade turística ligada aos espaços culturais e museus, entretanto, deveria ser muito mais valorizada. Salvador tem no seu passado, no seu patrimônio arquitetônico, seu patrimônio histórico e seus conjuntos de casarios, a sua grande riqueza, que é um atrativo do turismo cultural, e os seus museus são riquíssimos. Salvador é um lugar conhecido muito mais por esse patrimônio arquitetônico e histórico que existe do que pelos seus espaços museológicos”, expressa o historiador.
Estratégias
Dantas sugere a implantação de uma espécie de incentivo para que um turismo específico de museus e espaços de memória aconteça na capital baiana.
“É justamente isso que ao longo do tempo eu venho trabalhando para incentivar, valorizar, através das minhas aulas, minhas palestras ou das minhas consultorias. Inclusive, na época que eu era coordenador de Turismo Cultural e Religioso do Estado da Bahia, sempre buscava fazer essa ponte para valorizar os espaços museológicos no sentido turístico, quando recebíamos os embaixadores, os chefes de estados, os visitantes do Brasil e do exterior, sempre fazendo essa ponte para visitar os museus”, articula.
“Foi uma batalha, uma bandeira que levantei na época para colocar os museus como um grande hall para receber esses turistas aqui na cidade, mas muito mais precisa ser feito e é isso que a gente tá tentando trabalhar ao longo desse tempo. Eu, como historiador, pesquisador, e as outras pessoas que também atuam na área do turismo da história dos museus, nesse sentido de valorizar os espaços de memória na cidade, também no sentido turístico”, complementa Dantas.
Participação popular, com projetos assertivos para toda a comunidade baiana, estão entre as soluções do historiador para que Salvador passe a ser observada também como uma cidade de cultura de museus.
“Primeiro uma campanha, um trabalho de incentivo e sensibilização por parte do município, por parte do governo, por parte das políticas públicas em valorizar que, principalmente os jovens e as demais pessoas baianas e outras soteropolitanas, conheçam os museus e os espaços existentes”, sugere.
“É um trabalho de sensibilidade, é aquilo que os professores fazem na sala de aula. Valorizar as aulas de campo, levar para os museus, ter políticas públicas que garantam esse acesso. O Estado da Bahia, nesse sentido, tem uma iniciativa muito bacana, porque nenhum museu do Estado é pago, são todos gratuitos. Então, porque não existe uma visitação muito maior do que deveria ser, é um ponto para a gente entender e tentar achar uma solução”, finaliza Dantas.
Reportagem: Douglas Santana Ferreira, Edvânio Júnior e Karine Beatriz Araújo
Revisão: Antônio Netto