Autora Ruandesa emocionou a plateia do Café Literário ao falar sobre o genocídio do povo Tutsi.
Por Beatriz Scott e Paloma Simina
Revisão por Gabriel Ornelas
A autora ruandesa Scholastique Mukasonga, que atualmente mora na Normandia, na França, estava acompanhada do filho durante o evento e falou sobre os seus livros “Baratas”, “Nossa Senhora do Nilo” e “A Mulher dos Pés Descalços”. Mediada pela jornalista e apresentadora Denny Fingergut, a mesa de conversas ocorreu no 2° dia de evento na Bienal do Livro 2024, no Centro de Convenções de Salvador.
Nem a barreira de linguagem impediu a plateia de se sensibilizar com os relatos de Scholastique. Ela, que não fala português, contou com a ajuda do filho e da mediadora para traduzir suas falas do francês, devido a um imprevisto que impediu a participação do tradutor no momento do bate-papo. Embora parte do seu discurso tenha se perdido ao longo da palestra, a mensagem principal de Mukasonga foi transmitida com sucesso: é preciso dizer nunca mais para a intolerância, para a violência e para a xenofobia.
São 30 anos do conflito entre os povos tutsi e hutu, mas a memória daqueles que foram mortos permanece presente nas páginas escritas por Scholastique. Segundo ela, “o genocídio não deixou corpos, apenas nomes” e era “um dever para com a sua comunidade preservar a história dessas pessoas”.
Escrever, além da importância para o seu povo, foi uma forma de expurgar toda a dor causada pela guerra, segundo suas palavras. Ao ser questionada sobre seu pai e o papel dele em sua carreira, Mukasonga conta como o incentivo à educação abriu portas para que ela pudesse escapar do genocídio.
“Meu pai era importante dentro da comunidade, pois tinha educação e lia a Bíblia. Ele sempre fez questão que todos os filhos estudassem e aprendessem francês”.
Em 1992 mudou-se para França para estudar no Liceu, através de uma cota disponível de apenas 10% para meninas da etnia tutsi, e isso só foi possível devido ao seu conhecimento da língua francesa. Apesar de todo o preconceito vivido ao longo do período de estudos, ela considera o seu diploma um passaporte para sua saída de Ruanda à França, onde se tornou escritora.
Seu livro “Nossa Senhora do Nilo”, que traz uma visão mais pessoal da autora em relação aos conflitos e ao que viveu logo após sua mudança para a França, foi adaptado para o cinema em 2019. No entanto, a autora relata sentir-se insatisfeita com o filme. Segundo ela, alguns personagens que julgava importantes para a história não tiveram o destaque que ela desejava.
Ainda contando sobre sua família, Scholastique falou sobre “A Mulher dos Pés Descalços”, publicação que, de acordo com ela, melhor retrata todo o conflito em seu país. O livro, apesar de trazer as lembranças e experiências de sua mãe ao longo da guerra, fala sobre todas as mulheres ruandesas, símbolos de força e resiliência, vítimas de atos brutais que a autora preferiu não descrevê-los durante a conversa. Ela conta como sua mãe conseguiu preservar sua infância e a de seus irmãos, mesmo diante de tanta violência.
Hoje, após muito diálogo, houve a reconciliação das etnias em Ruanda. Em termos de justiça, um tribunal foi criado e pessoas foram julgadas e punidas, mas ainda é um processo de reconstrução do país. “Nunca houve ódio, mas foi necessário um grande esforço do povo tutsi para criar esse espaço de paz”, explica Scholastique.
Ao final da palestra, ao ser questionada pela mediadora sobre personalidades brasileiras que a autora conhece e admira, ela aproveitou para responder “Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior e o Presidente Lula”. Mukasonga, que já esteve diversas vezes no Brasil, admitiu sentir uma conexão especial com a Bahia, principalmente com Salvador.
Após a sessão de autógrafos, em entrevista para a Avera, Scholastique pode falar mais sobre suas experiências e seu processo de escrita. “Eu nunca pensei em mim. Eu estava engajada em não trair as expectativas dos meus pais e de toda a comunidade, essa foi a forma que encontrei de humanizar essas pessoas que eram desprezadas e chamadas de baratas (por isso o nome do livro). Eu queria que essa fala chegasse para o mundo todo, porque não é um problema somente meu, é de toda uma sociedade.” contou Mukasonga.
“No momento em que ‘Nossa Senhora do Nilo’ ganhou um prêmio, que nenhuma outra escritora negra africana havia recebido, foi como um aval de que eu tinha sido compreendida e que deveria continuar a relatar as histórias e reforçar que todos os seres humanos merecem viver. E isso também foi o que reforçou o meu próprio direito de viver e existir, que trouxe um sentido para minha vida. Foi um processo de me curar”, explicou a autora.
Em relação aos conflitos recentes ao redor do mundo, e a maneira como os veículos de notícia os abordam, Mukasonga tem muito a dizer.“Meu livro foi traduzido para o mundo inteiro e quando tive oportunidade de ir em outros lugares percebi que muitos não tinham conhecimento sobre o genocídio em Ruanda, e só descobriram por conta do meu livro. A escrita é indispensável. Você pode registrar, noticiar para o mundo inteiro, ter um alto alcance de público, mas às vezes é necessário um livro para contar o que realmente aconteceu”, explicou.
“Hoje, ao retornar para Ruanda, encontro um país reconstruído, porque agora as pessoas têm consciência de tudo que vivemos. A oralidade pode ser a forma mais natural de compartilhar conhecimento, mas existe uma importância muito grande na palavra escrita. É uma grande responsabilidade escrever”, completou Scholastique.
A escritora não mediu palavras ao reforçar a gravidade do genocídio ocorrido em Ruanda e mencionou a Ucrânia e Gaza, ao refletir sobre os conflitos que ainda acontecem ao redor do mundo.
“O genocídio foi real e deveria ser uma preocupação de todos. Nós sabemos a verdade, mas esquecemos muito rápido. A humanidade pode fazer melhor”.