Vítima de constantes ataques, os paredões, mesmo proibidos, se consolidam como manifestações de quase toda comunidade periférica de Salvador
Por Pedro Souza
Revisão por: Beatriz Fialho
Em outubro de 2021, Rui Costa, governador da Bahia na época, foi até as redes sociais manifestar-se em relação à chacina ocorrida durante uma festa paredão no bairro do Uruguai, onde seis pessoas morreram e doze ficaram feridas. Na ocasião, o governador disse que não iria permitir mais nenhuma festa paredão no estado, o que dividiu opiniões.
Naquele mesmo ano, casos de morte em festas desse tipo também aconteceram nos bairros de São Caetano, Paripe e Fazenda Grande do Retiro. No contexto pandêmico que se vivia naquele ano, coibir aglomerações de qualquer tipo era o mais coerente a se fazer, mas a permissão de festas autorizadas “regulamentadas” nos evidenciou que essa repressão possuía muito mais complexidades.
É possível observar sempre uma tentativa dos meios de comunicação de massa em associarem as festas paredão ao tráfico de drogas, promovendo um consenso social de que essa manifestação merece ser reprimida pois tem aliada a si, a contravenção; mas entender as nuances dessa relação pode nos mostrar ainda mais camadas a serem observadas, como nos disse Breno Mendonça, de 19 anos, cantor da banda O Rústico, morador do bairro Engenho Velho de Brotas.
“O que eu vejo no paredão é gente humilde, que não tem condição de ir pra um show. Eu comecei cedo a vender abará, picolé, água…não tinha como pagar oitenta reais num ingresso; o que cabia pra mim era descer a escada aqui do lado de casa e ir pra festa. As pessoas dizem ver na TV ligação com o crime, traficantes postando foto de arma, troca de tiro…sim, verdade, pois estamos numa comunidade e o crime não está ali só no dia do paredão, é todo dia. Todo dia quem mora na comunidade vê armas e drogas, não é só em dia de paredão”, disse o cantor, um dos expoentes da nova geração do pagode baiano.
Existe um consenso entre cientistas políticos que se debruçam a estudar violência no Brasil, de que o combate ao tráfico de drogas é feito de forma muito pouco eficaz, e acaba trazendo consequências para as comunidades como um todo. Além do aspecto político, existe também o lado financeiro de uma festa promovida dentro das comunidades, como também nos explicitou Breno, “Eu comecei a ir e passei a ver crianças, senhoras, gente que ganha dinheiro com isso. Se tem um paredão,vai ter a tia da cerveja, o tio do churrasco, o dinheiro vai girar entre a gente mesmo. Gente feliz, dançando, alegre, cantando, e isso me fez ir pro pagode”.
“Eu espero que as pessoas procurem saber mais sobre o assunto e não fiquem só vivendo de internet e televisão, pois ali você só vê o que querem que você veja”, Breno Mendonça, “O Rústico”.
Apesar do valor alto do ticket médio das festas privadas terem tido um aumento significativo, sobretudo no pós pandemia, a alternativa das periferias ao lazer, musicalmente, já é uma relação muito antiga, e essa democratização é vista de dentro do movimento. “Acredito que há essa democratização pois a gente trabalha muito e ganha pouco. Para uns, o paredão pode não significar nada, mas pra gente, é muito. É um dia de lazer. Pelo que eu vejo, só pelo fato do pagode ser algo nosso, se torna algo que não tem preço”, falou o cantor nascido e criado no Engenho Velho de Brotas.
Na década de 40, na Jamaica, foram criados os SoundSystems, que eram sistemas de sons colocados pelos DJs no fundo de caminhonetes, promovendo festas em praça pública, sendo uma alternativa de baixo ou nenhum custo para o público pobre; e foram essas festas que contribuíram para o surgimento do reggae jamaicano e seus subgêneros.
Friamente, essa cultura pode ser entendida como um embrionário paredão, por terem a mesma estrutura de organização, como nos explicou o mestrando em história pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), que se dedica a pesquisar música diaspórica afrolatina, Yuri Azevedo.
“Eu não acredito que seja uma continuação e sim uma história paralela. O processo da diáspora africana, principalmente de forma cultural e nas ligações e as construções musicais nas Américas, é muito a partir dessa troca; o entendimento musical dos diversos povos africanos, dialogando com os locais, indígenas, e também com o laço europeu. Então, tudo isso traz esse segmento de construção. É parecido pois existem histórias cruzadas, é muito sobre essência, de cosmovisão diaspórica, e que às vezes os envolvidos nem entendem, isso fica pairado nas discussões acadêmicas” relata o mestrando.
“Não gosto de usar esse termo pois já foi banalizado, mas, esse lance de entender a comunicação, o jeito que se faz música não apenas na construção musical, é muito ancestral. São histórias paralelas que estão sendo potencializadas pelas novas tecnologias, o SoundSystem foi o grande passo”, completou Azevedo.
“A repressão induz a população de modo geral a marginalizar esse processo de cultura. Sabemos que no Brasil toda produção feita por mãos, vozes ou inteligência negra é negligenciada em primeiro plano. Até que haja o embranquecimento do movimento para que seja aceito. Seja paredão, seja um jogo de várzea, graffiti, rap, tudo que parte da periferia é marginalizado e repreendido. A repressão estatal se move já nesse sentido de naturalização de marginalizar a cultura negra” afirma o mestrando quando questionado sobre a marginalização da prática e o papel do estado.
Musicalmente, o pagode baiano desempenha um papel fundamental do ponto de vista identitário, por ser um ritmo criado e desenvolvido nas periferias da cidade.
“A importância (do pagode nos paredões) é grande, principalmente pois é onde se potencializam novos cantores. Muitos dos novos artistas saem dos paredões, como o caso recente do Biruta, da banda A Invasão, que surge desse contexto. As músicas sempre são tocadas lá e a cultura hoje tende a ir para o que o paredão pede: teor de sexualização alto e o grave mais forte, isso faz parte da cultura paredão, que vai se adaptando também às realidades de cada momento “, esclareceu o pesquisador.
Vale ressaltar que a cultura do paredão não é apenas de Salvador e está presente praticamente em todos os estados do Nordeste de forma bastante forte, sempre dialogando com a realidade de cada lugar.
Muito se ventilou politicamente na época das constantes trocas de tiro ocorridas nas festas, sobre o que seria feito no âmbito legislativo em termos de proibição ou afrouxamento das fiscalizações, que também envolvem questões como a Lei do Silêncio e apreensão de equipamentos de som; mas nada evoluiu significativamente no intuito de uma proibição mais firme.
O que se sabe, é que os paredões já se mostram como movimentações extremamente consolidadas dentro das comunidades e que seu consenso social de lado negativo é, muitas vezes, balizado num pensamento elitista. A presença do tráfico de drogas em festas não é exclusiva das ocorridas dentro da comunidade, mas é evidente que, onde se tem o crime organizado, essa relação irá ocorrer de forma ainda mais evidente.