Panorama mostra mudança no cenário, mas um longo caminho pela frente até a igualdade nessa profissão
Por: Jéssica Guanabara
Lea Campos fez história ao se tornar a primeira mulher árbitra no mundo há 46 anos. Uma brasileira, nascida no interior de Minas Gerais, marcou seu nome no futebol e abriu caminho para tantas mulheres terem seu espaço na arbitragem, como Bibiana Steinhaus, alemã e a primeira mulher a apitar um jogo do futebol masculino em uma liga europeia em pleno ano de 2017. Muita coisa mudou em quase 50 anos e assim como Lea enfrentou tudo para exercer sua função, Bibiana deu mais um passo rumo a igualdade de gêneros no futebol.
Mas, infelizmente, a presença feminina na arbitragem ainda é pequena no Brasil. Na Bahia, então, nem se fala. Mulheres baianas responsáveis pelo apito em uma partida de futebol são raras, uma vez que a maioria escolhe ser árbitra assistente, função popularmente conhecido como “bandeirinha”. Os homens ainda ocupam muito mais espaço na arbitragem assistente, sendo 15 baianos bandeirinhas no quadro da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) contra apenas quatro mulheres do estado e a falta de representantes femininos é consequência de diversos fatores que afastam as mulheres do esporte, o preconceito sendo um deles.
Quem viveu na pele o que é ser pioneira na arbitragem feminina foi Tânia Regina Saldanha. Ela foi a primeira mulher oficializada no quadro da Federação Baiana de Futebol (FBF) e primeira baiana no quadro da FIFA. Começou na arbitragem por conta da formação em Educação Física, fazendo o curso em 1991 para entender o futebol e suas regras. Em sua turma, das três mulheres que entraram, apenas Tânia se formou. Logo na época que fez o curso, a FIFA demonstrou interesse em fazer um quadro feminino de arbitragem para os jogos femininos, pois, até então, quem apitava esses jogos eram os homens. Mais de 100 mulheres realizaram o teste para integrar o quadro da FIFA em 1994 e apenas quatro passaram, Tânia sendo uma delas.
Uma jornada tão memorável na arbitragem exigiu sacrifícios e seu vanguardismo trouxe situações difíceis que Tânia enfrentou para ser aceita com respeito em suas atuações como bandeirinha. “Eram tempos muitos difíceis, porque a mulher ainda não estava tão em evidência, então eu sofri muito”, relata. “Eu sofri preconceito até dos próprios árbitros. Alguns não queriam atuar comigo”. Tânia relembra que na época o presidente da FBF, Vigílio Elísio, queria ter uma mulher no quadro da FIFA e lutou muito para que ela ganhasse destaque, indo contra os árbitros que não queriam Tânia em suas equipes. “Ele dizia ‘não quer entrar no jogo? Então vou colocar outra pessoa porque ela vai entrar’ para que eu evoluísse”.
Suas histórias vão desde duvidarem de sua capacidade de bandeirar uma partida até os jogadores tirarem a roupa quando ela entrava no vestiário, só para provocar. “Foram coisas horríveis que eu ouvia. Eu cheguei a pensar em desistir porque as críticas eram muito severas, tanto da imprensa, torcida, dos próprios árbitros”, conta. “Hoje eu rio, sabe? Vejo o amadurecimento que tenho hoje e a vontade de passar para essas meninas o quanto elas estão agraciadas de não sofrer o que a gente sofreu. O que elas passam hoje em dia é café pequeno” constata.
POUCAS MUDANÇAS – Os tempos podem ter mudado, mas o preconceito continua o mesmo quando se fala sobre mulher na arbitragem. Além de enfrentar todos os desafios físicos durante o curso, a mulher interessada em ser árbitra ou assistente ainda tem que ser forte para aguentar a cobrança extra em relação ao seu trabalho em campo, sendo desrespeitada em diversos momentos.
Árbitra há nove anos e há dois no quadro da CBF, a baiana Patrícia dos Reis é uma das mulheres que sabe bem o quanto é complicado empunhar a bandeira em uma partida de futebol e já sofreu todo o tipo de xingamento e preconceito. “Eu já fui tirada de uma final porque na cidade era ano de eleição, uma mulher estava concorrendo com o prefeito atual e ele não quis que uma mulher bandeirasse porque a sua rival poderia usar aquilo para dizer que a mulher está em todos os lugares”, revela Patrícia.
Esse tipo de relato mostra que desde a época que Tânia trabalhava até hoje em dia, as mudanças foram bem poucas. Patrícia acredita que o que realmente mudou foi o modo que a sociedade aceita o machismo, pois algumas pessoas sentem vergonha de expressar esse tipo de pensamento e torna o preconceito mais velado. “A sociedade impõe que você não tenha preconceitos, só que você tem preconceitos. É desde o momento que não te escalam para o jogo porque você é mulher e quando te xingam não pelo que você é, mas porque você é mulher”, acrescenta.
Diante de um ambiente de trabalho hostil para essas árbitras, as entidades têm se preocupado em melhorar a aceitação da mulher no futebol. É o caso da Comissão Estadual de Árbitros de Futebol (CEAF). O presidente Vidal Lopes é um dos responsáveis pelo curso de formação de árbitros na Bahia e já vê o aumento do interesse das mulheres em seguir essa carreira, agora que elas são um pouco mais aceitas nesse meio. “Têm muitas mulheres que quebraram esse paradigma de que mulher não está inserida no esporte” aponta o presidente.
Consequência disso é o aumento dos números de árbitras no quadro estadual e nacional, dando esperança de um dia as mulheres ocuparem posições de destaque. Nos últimos anos, o número de mulheres que participaram do curso de formação de árbitro aumentou significativamente. Mesmo não sendo um curso anual, seis mulheres participaram da última turma, de um total de 32 alunos.
A comissão deseja tanto inserir cada vez mais as mulheres na arbitragem que já estuda criar um curso exclusivo para a formação de árbitras, realizando triagens nos cursos que ministram no interior da Bahia para selecionar as interessam por arbitragem. A previsão é que o curso aconteça no próximo ano e conta com o apoio da CBF. As mulheres interessadas em se tornar árbitra devem entrar em contato com a Federação Baiana de Futebol através do telefone (71) 3321 0448, para se informar sobre as próximas turmas. Basta ser maior de idade, estar cursando um curso de ensino superior, caso deseje fazer parte do quadro nacional um dia, e passar pela avaliação física necessária.
Para Vidal, o que falta para que mais baianas tenham destaque na arbitragem é a melhoria da parte física para atingir os índices necessários para que elas possam participar do quadro nacional e apitar jogos masculinos também. “Elas são mais prestativas e é só assimilar a atenção que têm por demais, com a parte física, que o resto elas tiram de letra”, acrescenta.
Mesmo a mulher sendo reconhecida pela qualidade do seu trabalho graças à atenção redobrada e o números de erros menores que os dos homens, elas ainda são minorias nas escalações dos campeonatos. “Se a mulher realmente é melhor, por que ela não entra mais?”, questiona Patrícia, mais uma voz na arbitragem feminina baiana que precisa ser escutada.