Historicamente, enxadristas têm menos oportunidades e apoio financeiro em campeonatos. Profissionais relatam descrédito por questões de gênero
O Xadrez é um esporte maioritariamente masculino. Dos quase 1800 grandes mestres internacionais do esporte, apenas 37 são mulheres – e a mulher que está em melhor posição no ranking, Hou Yifan, está apenas no 89º lugar.
Nunca houve uma campeã mundial, a enxadrista que chegou mais perto do feito foi Judit Polgár, a melhor jogadora de xadrez de todos os tempos, que esteve entre os dez melhores no ranking e ultrapassou a marca de 2700 pontos de rating [pontuação do Xadrez], tornando-a “super Grande Mestre”. Na contemporaneidade, não há outra mulher acima dessa marca.
Na Copa do Mundo 2021 da Federação Internacional de Xadrez (FIDE, sigla em francês), não houve a participação de nenhuma jogadora. As enxadristas preferiram participar da Copa do Mundo FIDE Feminina, já que, competindo entre os homens, tenderiam a ter um menor retorno financeiro pelos jogos.
Ainda assim, esse cenário, aos poucos, vai melhorando para as meninas e mulheres que sonham em ser enxadristas e admiradoras do esporte: em 2001, apenas 6% das pessoas classificadas internacionalmente eram mulheres. Em 2020, 19 anos depois, a presença feminina já chega a 15%. Mas ainda há muito a melhorar.
Falta de incentivo
As bolsas de contratação, os salários e os patrocínios são desiguais entre homens e mulheres, o que se mostra mais um desincentivo para quem sonha em ser enxadrista.
Em termos comparativos, a própria Copa do Mundo deste ano teve como premiação total da modalidade feminina o valor de pouco mais de meio milhão de dólares, enquanto a da modalidade absoluta chegou a 1,5 milhão de dólares.
Andressa Conterno, administradora da página Chess Mania, também chama a atenção para a disparidade nas premiações nos torneios de xadrez também no Brasil.
“Diferença de quase três vezes na premiação entre os torneios absolutos e femininos. Vou utilizar o Campeonato Brasileiro deste ano, onde o prêmio para o campeão do absoluto foi de trinta e seis mil reais, já o feminino foi de dezesseis mil reais”, relata Conterno.
“Dessa maneira, elas irão ter menos condições de comprar materiais melhores para aprimorar os seus treinos ou para ir disputar torneios em outros lugares mais distantes do seu”, completa a entusiasta.
Darlane Assunção, octacampeã do Campeonato Paraense de Xadrez Feminino, também destaca a disparidade entre os prêmios dos campeonatos.
“As premiações do feminino são bem baixas, e isso quando tem premiação para mulheres. Ainda falta muito para melhorar, e a situação é bem mais difícil pra mulheres nortistas e nordestinas, seja pelas longas distâncias dos principais torneios nacionais, seja pela própria escassez do esporte na região”, relata Assunção.
As competidoras, muitas vezes, têm dificuldade antes mesmo da competição começar, no momento de comprar as passagens para as viagens, por exemplo.
Para incentivar a modalidade, atletas brasileiras fundaram o projeto “Damas em Ação – Rumo à Maestria”, que visa a realização de rifas para custear os gastos e a divulgação das conquistas das jogadoras compatriotas, aumentando a visibilidade e a representatividade do enxadrismo feminino.
O desporto chegou a fazer parte do Bolsa Atleta do Governo Federal, entre 2010 a 2016, mas apenas 41 atletas conseguiram receber o auxílio em todo o período. Juliana Terao, campeã brasileira de xadrez, recebeu apenas respostas negativas em suas solicitações.
Não faltam exemplos em todo o mundo de jogadoras que tiveram dificuldades devido a esse problema. A canadense Ashley Tapp, aos 13 anos, se tornou conhecida no mundo das 64 casas após se classificar para o Campeonato Mundial de Xadrez da Juventude, que ocorreu na Eslovênia, em 2012.
A jovem enxadrista precisou angariar fundos devido a falta de patrocínios e chegou a jogar partidas cobrando apenas cinco dólares dos adversários. Hoje, a jogadora tem uma página onde busca recursos para si e para as colegas de esporte, a “Ashley Chess Girl”.
Preconceito
O ex-campeão mundial de xadrez Garry Kasparov, em entrevista à revista Playboy de 1989, disse que “existe xadrez de verdade e xadrez feminino”. Este é o retrato de como a sociedade, durante décadas, viu as mulheres como jogadoras inexperientes ou despreparadas.
Esse pensamento afasta as mulheres do Xadrez por verem a forma que o enxadrismo feminino é tratado no Brasil e no mundo.
“O Xadrez Feminino no Brasil é pouco praticado, incentivado e divulgado”, diz Kátia Almeida, administradora da página “Musas do Xadrez”, que tem como intuito a divulgação do trabalho feminino. “É, quase sempre, aprendido na infância e esquecido ainda nela”, completa.
A maior parte das enxadristas brasileiras não possui titulação da Federação Internacional de Xadrez, porque precisariam ser cadastradas pela Confederação Brasileira de Xadrez, que possui um órgão administrativo em cada estado. O problema é que, na grande maioria das vezes, isso não ocorre.
“Estes órgãos devem ser responsáveis pelas questões burocráticas, facilitação do acesso dos jogadores ao registro oficial, ao treinamento e a promoção do esporte em todo o território nacional. No entanto, esse trabalho não é realizado da forma eficiente, eficaz ou ideal que desejaríamos, priorizando o cadastro dos jogadores do sexo masculino”, relata Almeida.
O preconceito faz com que até mesmo a estrutura dos torneiros não seja feita para receber as mulheres.
“Pode parecer exagero, mas em todo torneio isso acontece. Eu poderia contar na mão os torneios que não sofri preconceitos e brincadeiras de mal gosto acerca de ser mulher enxadrista. Já tive que usar o banheiro masculino por não abrirem o banheiro feminino”, desabafa Assunção.
Participações
Mesmo superando os desafios de incentivo financeiro, às mulheres enxadristas enfrentam ainda outro desafio: o descrédito sobre a capacidade de vencer grandes competições.
Foi o que aconteceu com a húngara Judit Polgár. Em 1994, Garry Kasparov, um dos maiores jogadores de xadrez do mundo, realizou uma jogada que é considerada proibida: ele voltou o cavalo de um lance perdedor, mesmo já tendo deixado a peça no tabuleiro.
No esporte, quando a peça é realocada no tabuleiro, não pode ser movimentada novamente. Segundo Polgár, com apenas 17 anos e ainda no início de sua carreira, teve receio de reclamar e perdeu a partida.
Vídeos comprovaram o erro de Kasparov, mas, ao ser questionado, disse apenas que estava com a sua consciência tranquila.
Com a húngara Anna Rudolf não foi diferente. A enxadrista, em 2008, vencia uma série de jogos em um torneio francês. Em determinado momento do campeonato, foi acusada por outros jogadores de jogar com um Engine, uma espécie de software.
A acusação foi tão sem fundamento, que os concorrentes alegaram que o engine estava implantado em um batom da competidora, que estava na mesa durante seus jogos.
Ao final da partida, muitos não quiseram cumprimentá-la, o que deveria ter ocorrido seguindo o padrão esportivo. Nada foi provado contra ela.
Representatividade
“É necessário pontuar, no entanto, que esta realidade, mesmo que ainda a conta-gotas, vem melhorando no quadro atual, o que se deve em grande parte à influência dos meios de mídia e das redes sociais, que aproximam e incentivam as meninas entusiastas do xadrez”, relata Almeida.
A série “O Gambito da Rainha” foi uma das principais influências midiáticas para o crescimento do esporte no mundo. Fora as mais de 64 milhões de visualizações nos 28 primeiros dias de lançamento, 73% das pessoas interessadas em informações sobre xadrez na internet são mulheres.
Além disso, as meninas se sentem mais confortáveis em falar sobre o xadrez em suas redes, e se esforçam para que o enxadrismo feminino se torne mais conhecido. “[Na página] buscou-se dar uma maior visibilidade para elas através das lives denominadas ‘Perspectivas do Xadrez Feminino’”, completa Conterno.
Repórteres: Íssala Queiroz da Cruz Silva, Maiara Montalvão Giudice Torres, Rudá Paixão de Souza Andrade, Sandy Ádila Jesus dos Santos, Saulo Yuri Pereira da Silva
Revisão: Antônio Netto