A recente escalada de violência entre Israel e o Hamas atraiu novamente a atenção do mundo para uma crise que se arrasta por décadas
Por Jéssica Nobre
Revisão: Fernanda Abreu
Após alguns anos de relativa calma, Jerusalém Oriental se tornou, novamente, o foco das tensões entre israelenses e palestinos.
O que se iniciaria com motins contra os planos de despejos de famílias palestinas de Sheikh Jarrah, bairro situado em Jerusalém Oriental, se transformou em ataques violentos que se estenderam por Gaza e diversas cidades de Israel.
Ocorre que, de acordo com a partilha realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, através da Resolução 181, Jerusalém deveria ser dividida em duas partes, o lado oriental, palestino, e o lado ocidental, israelense.
Então, uma pergunta fica no ar: por que a justiça de Israel determinou que as famílias palestinas fossem expulsas e os judeus que entraram na justiça tivessem posse dos terrenos?
A crise entre esses dois povos já existe há muito tempo e envolve discussões complexas no âmbito histórico, geopolítico e religioso que devem ser pontuadas com cautela. Para entender um pouco mais, é preciso voltar no tempo.
Um breve percurso histórico
Em meados do século XIX, no ano de 1850, começa a se expandir na Europa um movimento político chamado sionismo, que visava o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado nacional judaico. Este movimento começa a ser difundido e nesse período começa a migração dos judeus para a região da Palestina.
Com o passar dos anos, esse movimento começa a ganhar mais força e depois da Primeira Guerra Mundial, quando o Reino Unido tomou o controle da área conhecida como Palestina, as fronteiras são demarcadas de uma forma que visassem os interesses dos britânicos, através de uma construção europeia do chamado nacionalismo.
“O movimento sionista continuou forte mesmo após a criação do estado judeu e, finalmente, em 1947, é criado, através da Resolução 181 da ONU, o Estado de Israel na região que fica a Palestina. Aqui que começam todos os problemas”, comenta Murilo Jaques Barbosa, professor, especialista em Relações Internacionais e mestre em Desenvolvimento Regional e Urbano.
A partir no ano de 1948, então, com a criação do Estado de Israel, começam os primeiros ataques entre os israelenses e países árabes, principalmente, porque Israel conquista Jerusalém Ocidental e a região da Galileia.
Mas foi apenas no ano de 1967, com a Guerra dos Seis Dias, que Israel, apoiado pelos EUA, conquista Jerusalém Oriental, que até então pertencia aos palestinos. Foi um dia de comemoração para os israelenses e de tristeza para os palestinos, chamado de Nakba.
Esse marco na história acaba influenciando o que aconteceu nas últimas semanas, já que as famílias palestinas ao serem expulsas de suas propriedades estão instaladas em Sheikh Jarrah, bairro situado em Jerusalém Oriental.
A opinião daqueles que vivem e sentem a crise
“Em 1956, essas famílias foram instaladas nesse bairro, quando expulsas de Jerusalém Ocidental. Agora, quatro delas são ameaçadas de expulsão, renovando o processo de expropriação e despovoação do povo palestino, exatamente como foi em 1948”, afirma o Dr. Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL).
“Israel alega que tem uma decisão judicial para essas famílias, o que é absolutamente absurdo. Primeiro que é ilegal que uma potência colonial exerça jurisdição, por legislação internacional, sobre território e sobre população que vive a ocupação. Segundo que não há nenhuma prova desses títulos”, completa o presidente.
Se, de um lado, há leis israelenses que permitem que judeus reivindiquem direito de propriedade às terras que possuíam antes de 1948, de outro, não concedem o mesmo direito aos palestinos que eram proprietários de terras que atualmente pertencem a Israel.
Trata-se de uma questão que desafia os limites da Justiça, uma vez que um palestino também não poderá contar com essa lei para ratificar o direito à propriedade de uma terra que foi sua em Jerusalém Ocidental.
“Além da indevida ocupação e deturpação do território, há uma brutal sonegação e violação dos direitos e da dignidade do povo palestino. A violação de direitos dos palestinos, decorrente da ocupação de Israel, é permanente”, aponta Keithe Hamid, professora e filha de imigrante palestino residente no Brasil.
Por outro lado, Yohay Barzilay, judeu residente em Israel, comenta que ainda que exista uma decisão judicial que tenha concedido direitos aos judeus, foram alguns árabes que moram em Israel e apoiam o Hamas que começaram com os novos ataques em maio desse ano.
Após a semana de tensões em Jerusalém Oriental, confrontos entre palestinos e a polícia israelense eclodiram no início de maio na Esplanada das Mesquitas, um local sagrado para judeus e muçulmanos.
Em razão desse embate, o grupo Hamas começou a lançar foguetes em massa da Faixa de Gaza contra Israel e as forças militares israelenses responderam com bombardeios em Gaza.
“Eles queimaram sinagogas, apedrejavam carros, destruíram as casas, lixaram judeus e deixaram outros feridos. De um modo geral, os árabes fizeram coisas terríveis, mas, infelizmente, os judeus também fizeram”, comenta Barzilay.
No entanto, segundo Barzilay, não há simetria nessa crise, em que ambos os povos teriam parcela de culpa nos constantes embates que perpetuam entre os dois povos por décadas.
“Os árabes aqui de Israel começaram o conflito lá em 1948, quando muitos judeus precisaram fugir das suas cidades após ataques dos países árabes”, afirma o técnico de informática.
Hamas: quem são e o que reivindicam?
O Hamas é o maior dentre diversos grupos de paramilitantes islâmicos da Palestina.
O grupo teve origem em 1987, após o início da primeira intifada palestina contra a ocupação israelense na Cisjordânia e da Faixa de Gaza, uma estreita faixa de terra localizada na costa oriental do Mar Mediterrâneo, fazendo fronteira com Israel e com o Egito.
“O objetivo do Hamas é combater o avanço israelense. Afirmam que representam a voz dos palestinos dentro dessa repressão que supostamente o Estado de Israel comete contra eles. Mas de fato, podemos considerar o Hamas como um grupo terrorista, porque usa táticas que promovem o terror, o medo”, explica Barbosa.
Quando Israel retirou suas tropas e colonos de Gaza, o Hamas se envolveu no processo político palestino e ganhou as eleições legislativas em 2006, desde então assumiu o controle de Gaza e travou três guerras com Israel.
Originalmente, o estatuto do Hamas se compromete a destruir Israel e exclui qualquer paz permanente com o Estado Judeu, deixando clara a dificuldade de negociação.
No entanto, em 2017, produziu um novo documento suavizando algumas das suas posições, mas não foi reconhecida por Israel.
“O Hamas fala que o seu objetivo é destruir Israel e matar todos os judeus. Isso está no estatuto deles, inclusive. Obviamente que a gente como judeu, que mora aqui, não gosta disso. É um assunto complicado, mas, resumidamente, eles são terroristas”, enfatiza Barzilay.
Após os ataques que ocorreram entre o Hamas e o exército israelense, no dia 21 de maio de 2021, ambos implementaram o cessar-fogo dos confrontos, porém, esse clima de tensão em maior ou menor escala é presente na região há mais de meio século.
“Para a gente falar em cessar-fogo, são processos que são pontuais porque o discurso de um lado fala que conseguiu atingir seus objetivos e do outro lado também fala a mesma coisa. Nessa relação, vai sempre estar oscilando. Todas as tentativas de paz geraram esperança, mas nunca surtiram efeitos”, pontua o professor Barbosa.
Em relação aos últimos acontecimentos, Barzilay afirma que o governo israelense não tem como objetivo acabar com o Hamas, mas enfraquecê-lo aos poucos, destruindo todos os túneis que construíram e todas as fabricas de misseis possíveis.
“Acho que acabar com o Hamas é mais complicado, porque se a gente acaba com o grupo, pode surgir uma organização talvez muito mais louca. E isso nós não queremos”, afirma Barzilay.
Dos depoimentos daqueles que moram ou tem família na região
Morador de um vilarejo situado nas montanhas de Judá, um pouco ao sul de Jerusalém e leste de Israel, Barzilay afirma que cresceu próximo à Faixa de Gaza, na cidade de Gush Katif, se mudando em 2005 quando o governo israelense decidiu deixar a região com o controle dos árabes.
Apesar da rotina dos moradores do pequeno vilarejo ser tranquila, afinal, é muito distante da Faixa de Gaza, em 2014, houve o lançamento de um único míssil no local.
“Em 2014, teve o lançamento de um míssil aqui. Teoricamente, eles podem lançar mísseis, mas há alguns motivos que eles não fazem: primeiro que é muito distante, segundo que aqui são vilarejos pequenos e terceiro que há muitos árabes”, afirma Barzilay.
Segundo ele, a situação só piora quando há conflitos iguais aos que ocorreram nos últimos dias, uma vez que são conflitos armados entre o Hamas – na Faixa de Gaza – e os militares israelenses.
“No dia a dia aqui, geralmente, é muito tranquilo. Não vou dizer que em todo o Israel, mas em quase todo o Israel é assim. O problema é quando temos tipos de guerras, geralmente com o Hamas em Gaza. Aí é mais perigoso, com centenas de mísseis, chegando até 300 mísseis por dia”, conta Barzilay.
A propriedade na fala é de alguém que cresceu e viveu no fogo cruzado por anos morando ao lado da Faixa de Gaza – em Gush Katif – e acompanhou de perto um dos bombardeios com cerca de cinco mil foguetes lançados sobre os judeus em 2005.
Do outro lado do mundo, no entanto, descendentes árabes-palestinos acompanham apreensivos do Brasil, as notícias das famílias que ainda residem na Palestina e vivem a angústia da crise armada entre Israel e Palestina.
“Só meu pai e minha mãe migraram para o Brasil. A totalidade da minha família continua na Palestina. Inclusive, uma das minhas irmãs reside lá desde 1999. À grosso modo, a gente vive todo o drama da ocupação da Palestina e todos as violências provocadas por Israel”, explica Rabah.
Além de ter parentes que vivem no local dos conflitos, Hamid sentiu na pele o que passam os palestinos após uma das visitas realizadas em 2014 na cidade do pai, chamada Kafr Ni’ma.
“Toda a família do meu pai reside na Palestina. Dentre eles, menos de meia dúzia tem autorização permanente para entrar em Jerusalém e, ainda assim, são submetidos ao checkpoint do Muro do Apartheid”, afirma a professora.
“Em 2014, quando estive em Kafr Ni’ma, assisti à brutal invasão israelense a casas de familiares. A casa do meu avô estava alvejada pelo poderio bélico de Israel”, complementa Hamid.
A posição do Brasil sobre os atuais embates
Nos últimos anos, o Brasil sempre optou por ter uma postura amigável com Israel e Palestina, procurando ter uma posição de equidistância.
No entanto, alinhando-se quase automaticamente aos posicionamentos da política externa dos EUA no Oriente Médio, o governo do Presidente Bolsonaro resolveu “abrir mão” do esforço diplomático já existente, demonstrando apoio aos israelenses.
“Quando o Brasil se posicionou de uma forma mais enfática com essa movimentação dos EUA na mudança da embaixada americana para Jerusalém, houve pressões internas da própria base de apoio, como agropecuária e evangélica, então Bolsonaro teve que voltar atrás”, informa o professor Barbosa.
A reação da base de apoio do governo se manifestou contrária tendo em vista o grande número de investimentos que os árabes fazem no Brasil todos os anos através da exportação, principalmente da soja.
“Já são 10 anos que exportamos na casa dos US$ 200 bilhões ao ano. Em 2011, exportamos US$ 253,7 bilhões, nossa maior marca histórica. E nossos superávits não caíram nem com queda nas exportações”, informa Rabah.
Ocorre que, diante da política externa do atual governo, as exportações caíram mais de US$ 10 bilhões. Só no ano passado, as exportações caíram para US$ 209,2 bilhões, uma perda de 5,4%.
Para o presidente da FEPAL, “o Brasil pode ser amigo de Israel, claro, mas não precisa ser inimigo de outros países e povos para isto, inclusive pagando com prejuízos comerciais. Resta demonstrado que os prejuízos ao Brasil são decorrentes da ideologização da política externa”.
Possíveis soluções para a crise Israel-Palestina
Falar em uma possível solução para o constante embate entre israelenses e palestinos é complexo e delicado. Cada um dos povos tem suas feridas e sentimentos nacionalistas indiscutíveis, que ultrapassam as barreiras políticas, culturais e religiosas.
“Você querer construir soluções encaixando suas perspectivas a realidades diferentes, culturas diferentes, está fadado ao fracasso. Ambos foram obrigados a conviver em um ambiente em um estado único quando, na verdade, deveriam conviver juntos pelas próprias dinâmicas e relações políticas de poder”, pontua Barbosa.
“De fato, é um problema muito amplo não só dessa perspectiva Israel-Palestina, mas de dinâmicas sociais, culturais. Há uma reversão nesse caso e a solução era o fim dessa interferência de potências ocidentais como EUA e Países Europeus, para que a dinâmica dessa região fluísse”, completa o professor.
Em contramão, os descendentes árabes-palestinos acreditam que a única saída para que devolvessem os direitos humanos, territoriais e socioculturais dos palestinos, seria uma intervenção da comunidade internacional, que por muito tempo ficou adormecida.
“É preciso que haja uma intervenção da comunidade internacional, inclusive com a exigência do cumprimento de acordos internacionais. Urge-se que a Palestina seja reconhecida, livre e soberana. É, sobretudo, uma questão de humanidade”, afirma Hamid.
Para o presidente da FEPAL, a comunidade apenas almeja que o povo palestino que vive a ocupação e os israelenses inocentes não sofram mais.
“Nós queremos apenas a obediência e a implementação de todas as resoluções da ONU para a questão palestina. Inclusive, a emblemática Resolução 194 de 1948, que é a resolução para retorno dos refugiados e a cláusula condicionante da admissão de Israel como 56º Estado-Membro da ONU em 1949”, expõe Rabah.
Contudo, Barzilay, que vive em Israel e sente de perto diariamente todos os dramas por trás dessa crise, não vislumbra possíveis soluções. Para ele, não há uma crise Israel e Palestina, mas sim entre Israel e mulçumanos, ou seja, entre judeus e árabes-mulçumanos.
“A maioria das pessoas não querem entender isso, mas a raiz do conflito é religioso. Por isso, eu não acredito que há uma solução. Sou realista”, afirma o judeu residente em Israel.
“Mas se a gente quer começar a falar sobre isso, primeiro seria os árabes reconhecendo Israel como um estado judeu e desistir de trazer todos os “refugiados-palestinos” para Israel. Se isso não acontecer, acredito que não vai haver conversa. Não há uma solução”, completa Barzilay.
Enquanto isso, o Conselho dos Direitos Humanos da ONU aprovou nessa quinta-feira (27) a abertura de inquérito internacional sobre as possíveis violações dos direitos humanos de Israel no território palestino durante os bombardeios contra a Faixa de Gaza ocorridos entre os dias 10 e 20 de maio.
Os EUA e a Coreia do Sul prometeram ajuda milionária aos palestinos, para a reconstrução da Faixa de Gaza. A ajuda visa cooperar com a comunidade internacional para melhorar a crise humanitária.
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Produção e coordenação de pautas: Márcio Walter Machado