A importância da autodescoberta além da juventude e as jornadas complexas enfrentadas pelos indivíduos
Por Júlia Apenburg
Revisão por Gabriel Ornelas
Durante muito tempo, a sociedade impôs normas rígidas e padronizadas acerca do conceito do que se é considerado normal, principalmente, relacionado aos temas sexualidade e identidade de gênero, marginalizando e discriminando os indivíduos que não se encaixam nos moldes da heteronormatividade e binariedade de gênero. E, essa padronização social contribuiu para uma expansão de pensamentos estereotipados e agressivos a respeito das pessoas que se incluem em outros espectros de gênero e sexualidade, dificultando a promoção da diversidade.
A homoafetividade é um grande tabu na sociedade brasileira, tanto para o homem gay quanto a mulher lésbica, mas para além das preocupações externas que permeiam esses indivíduos, há uma outra: a autoaceitação e a luta contra si mesmo.
De acordo com os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, cerca de 2,9 milhões de pessoas se declararam homossexuais ou bissexuais no país, o que correspondia a 1,8% da população adulta, acima de 18 anos. Já 1,7 milhão não sabia sua orientação sexual e 3,6 milhões não quiseram responder.
Em 2019, havia 159,2 milhões de pessoas de 18 anos ou mais no país, das quais 53,2% eram mulheres e 46,8% eram homens. Desse total, 94,8% se declararam heterossexuais; 1,2% homossexuais; 0,7% bissexuais; 1,1% não sabiam sua orientação sexual; 2,3% não quiseram responder e 0,1% declararam outra orientação sexual, como assexual e pansexual.
A primeira coisa que se é necessário entender é que orientação sexual difere de opção, as pessoas não a escolhem, pois ela é uma característica intrínseca ao cidadão. Essa é uma particularidade que responde a uma necessidade interna relacionada a atração sexual, não se trata de quaisquer influências do ambiente.
Quando a pessoa se descobre homoafetiva, normalmente reage de duas maneiras: com naturalidade ou com rejeição. E é na segunda forma onde está o problema, pois ao lutar contra si mesmo é lançado uma grande questão: um sofrimento atroz onde a pessoa se autoaflige.
O termo “descobrimento tardio” é relativo, pois pode ser causado tanto por pressão externa quanto por obstáculos pessoais. Algumas pessoas da comunidade LGBTQ+ descobrem-se antes de constituir uma família, enquanto outras, depois. Além disso, os problemas relacionados ao preconceito e as imposições dos ambientes, sejam internos ou externos, podem interferir no processo de autodescobrimento, cuja descoberta pode vir tardiamente.
Antes de conseguir lidar com a sociedade, o cidadão precisa lidar consigo mesmo, se aceitar e se entender. Tentar mudar a sua própria orientação é um caminho doloroso e geralmente fadado ao fracasso, afinal essa individualidade é um aspecto que acompanha a todos desde a nascença.
Em 2013, a Organização dos Estados Americanos (OEA) deliberou e publicou a Resolução OEA nº 2.807/2013 – Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade e Expressão de Gênero sobre “Direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero”, por meio da qual condena todas as formas de discriminação contra pessoas devido à orientação sexual e à identidade ou expressão de gênero, e insta os Estados-membros, dentro dos parâmetros das instituições jurídicas de seu ordenamento interno, a eliminar, onde existirem, as barreiras que as lésbicas, gays e pessoas trans, bissexuais e intersexuais enfrentam no acesso equitativo à participação política e em outros âmbitos da vida pública, bem como evitar interferências em sua vida privada. O teor desta resolução foi apresentado para votação na OEA pela delegação brasileira, tendo sido aprovada e consistindo no dispositivo normativo que diretamente afirma o compromisso estatal com ações de combate à LGBTfobia.
Depois de travar a luta da autoaceitação, o indivíduo é levado a enfrentar um novo desafio, que é afirmar a sua identidade dentro da sociedade. Barreiras levantadas pelo preconceito e discriminação, seja mediante as relações familiares, entre amizades ou profissionais, acabam gerando uma preocupação, em certos casos uma aversão, a sua própria identidade.
A população intersexo no Brasil ainda carece de proteções jurídicas específicas e reconhecimento das suas demandas, contudo a Associação Brasileira Intersexo (ABRAI) passou a existir no ano de 2020. A oficialização de uma associação é um marco de extrema importância na luta pela garantia de direitos das pessoas intersexo.
Outro marco histórico de grande relevância foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2019, que vinculou a homofobia e a transfobia ao art. 20 da Lei nº 7.716/1989, reconhecida por criminalizar o racismo. Portanto, até que o Congresso Nacional aprove uma lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas podem ser igualadas aos crimes de racismo através da adoção do conceito de racismo social. Em outros termos, pessoas LGBTQIA+ passaram a ter cobertura jurídica para tais crimes.
Um estudante, que preferiu não ser identificado, revelou que descobriu sua atração por pessoas do mesmo sexo com 12 anos, mas só veio aceitar sua homoafetividade dois anos depois.
“Ainda que a sociedade esteja aceitando mais a comunidade, basta falar com qualquer pessoa que não seja aliada [da comunidade] LGBTQIAPN+ e você percebe como o preconceito é muito prevalente na sociedade brasileira, até mesmo vindo de pessoas que aparentam simpatizar com a causa”, pontuou o estudante.
Segundo afirma, é um avanço se assumir, mas que exige muita coragem, pois nem sempre é seguro fazer isso de forma pública.
“Ao omitir sua orientação é muito fácil a pessoa se sentir como se não estivesse sendo ela. Porém, caso se assuma, corre um grande risco de sofrer preconceito e até existe a possibilidade de ser violentada ou assassinada”, explicou.
Para a psicóloga Ana Mendes, a população é condicionada a cisheteronormatividade, isto é, nascemos com determinado sexo e já é esperado a cisgeneridade, ou seja, a atração pelo sexo oposto. Isso dificulta o processo de descoberta sobre si mesmo.
“A autodescoberta tardia tem um ponto positivo que é a maturidade, estabilidade, autonomia e liberdade de modo geral. Por mais que pareça e de fato seja um pouco confuso, esses são aspectos bem comuns que acabam trazendo um pouco mais de conforto nessa descoberta”, disse Ana.
Para Mendes, a sociedade influencia de alguma forma a heterossexualidade compulsória, o que ela considera o fator predominante para uma descoberta lenta sobre a própria orientação. A heteronormatividade é como uma produção imposta da norma heteroafetiva, cuja suposição é que todas as pessoas se relacionem com o sexo oposto, o que desenvolve danos psíquicos e/ou emocionais nos indivíduos LGBTQ+.
Enquanto psicóloga, ela destaca e incentiva a importância de procurar profissionais que acolham essas pessoas e as ajudem no processo de reconhecimento e aprendizado e, sobretudo, lidar com a própria autoaceitação também é uma forma de contribuir para um processo mais sereno de descobrimento do próprio eu.