Promotora do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia comenta sobre o caso Mariana Ferrer e propõe reflexões sobre o sistema judiciário brasileiro
Por Marco Dias
Revisão: Felipe Correia
Márcia Teixeira, promotora do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, participa da live “Sessão Temática: O Caso Mariana Ferrer: ‘Estupro Culposo’?”, realizada pela Unifacs nesta sexta-feira (06).
Teixeira conversa com os estudantes da instituição para comentar sobre a repercussão do caso Mariana Ferrer: “nós fomos invadidos, pelas redes sociais e pela mídia, com aquela audiência envolvendo a jovem Mariana Ferrer, que foi vítima de estupro de vulnerável”, comenta a promotora.
O caso de Mariana foi o principal assunto das redes sociais na última terça-feira (03), depois que o portal The Intercept Brasil publicou uma reportagem com os detalhes do processo, além de um vídeo de uma audiência em que o advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho dispara inúmeras ofensas à jovem.
O Caso Mariana Ferrer
O caso teve início quando a promotora de eventos Mariana Ferrer acusou o empresário André de Camargo Aranha de tê-la estuprado na noite de 15 de dezembro de 2018, em um camarim privado, durante uma festa no beach club Café de la Musique,em Jurerê Internacional, em Florianópolis. À época do ocorrido, ela tinha 21 anos e era virgem.
As imagens recuperadas pela polícia mostram Mariana na companhia do empresário. Ela suspeita ter sido drogada e, por conta disso, não lembra exatamente o que aconteceu. Nas roupas dela, a perícia encontrou sêmen do empresário e sangue dela. O exame toxicológico de Mariana não constatou o consumo de álcool ou substâncias ilícitas.
O inquérito policial concluiu que o empresário havia cometido estupro de vulnerável, quando a vítima não tem condições de oferecer resistência. O Ministério Público denunciou o empresário à Justiça.
Segundo Teixeira, “no caso de Mariana, a denúncia se valeu do artigo 217-A, parágrafo primeiro, que vai dizer ‘incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência’, ou seja, neste caso específico, qualquer mulher que estiver sob o uso de álcool, de drogas ilícitas ou algum remédio que, de alguma forma, promova alteração nessa capacidade de oferecer resistência, nós enquadramos como estupro de vulnerável”, explica a promotora.
Estupro culposo
Durante o processo, o promotor do caso foi transferido para uma outra promotoria. Para o novo promotor, não foi possível comprovar que Mariana não tinha capacidade para consentir com o ato sexual, não existindo, assim, o dolo, a intenção de estuprar.
Teixeira explica que, segundo artigo 18, parágrafo único, do Código Penal, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. Para praticar um crime com dolo, portanto, é necessário ter vontade e consciência. “No caso dos crimes contra a dignidade sexual, não cabe crime culposo”, comenta a promotora.
O portal The Intercept, ao retratar a resolução do caso, definiu a sentença com a expressão “estupro culposo”, termo que se popularizou nas redes sociais. Porém, esse tipo penal não existe. Teixeira descreve que “não existiam nos autos provas para que se atribuísse a falta de vontade dela. Não haviam provas de que essa vontade estava reduzida. Então, como não existe estupro culposo, o caminho era a absolvição. Não haviam provas suficientes para condená-lo, mas isso não significa que ele é inocente”, pondera Teixeira.
O vídeo da audiência
O vídeo da audiência divulgado pelo portal The Intercept Brasil mostra Mariana sendo humilhada pelo advogado de defesa de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, que exibe cópias de fotos sensuais produzidas pela jovem quando era modelo profissional, como reforço ao argumento de que a relação foi consensual. O advogado analisa as imagens e as define como ginecológicas, além de afirmar que jamais teria uma filha do nível de Mariana. Ele, ainda, repreende o choro de Mariana e dispara “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”.
A jovem reclama do interrogatório para o juiz e pede para ser tratada com respeito, mas as poucas interferências do juiz, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, ocorrem após as falas do advogado de Aranha. Em uma das situações, o juiz avisa Mariana que vai parar a gravação para que ela possa se recompor e tomar água.
Para Teixeira, está claro que Mariana sofreu uma humilhação: “em uma audiência, nós temos a obediência ao ordenamento jurídico. A Constituição Federal fala de dignidade da pessoa humana. Então, as nossas leis orgânicas, do Ministério Público, da OAB, nos dizem que precisamos respeitar aquelas pessoas. Eu não posso chamar o réu, em uma audiência, por exemplo, de facínora, de criminoso, xingá-lo”, explica a promotora.
Teixeira afirma que devemos procurar os órgãos correcionais para garantir e assegurar o direito ao tratamento digno: “aquilo que aconteceu, se acontecer com qualquer cidadão ou cidadã, ele deve imediatamente procurar a corregedoria, a ouvidoria, a OAB. Nós não podemos tratar as pessoas sem dignidade, como aconteceu no caso de Mariana”, explica.
A promotora ainda comenta sobre a atuação do juiz durante a audiência, explicando que as suas interferências não dizem respeito ao direito de defesa da vítima: “quando o juiz interfere, ele não está interferindo no direito de defesa, ele está ali avaliando o que é importante para formar o que nós chamamos de cadeia de custódia das provas”, afirma Teixeira.
Machismo estrutural e sistema judiciário brasileiro
A promotora Márcia Teixeira afirma que vivemos em uma sociedade onde ainda está instalado o machismo estrutural e, paralelo à ele, temos também a cultura do estupro. Ela explica que os corpos das mulheres são acessíveis, fáceis, prontos para serem vítimas dos homens, em sua maioria brancos e héteros. E reforça que a estrutura jurídica também vem dessa construção: “eu sou promotora de justiça há 26 anos e vivi a época em que uma profissional sexual, uma prostitua, por exemplo, não era considerada uma boa testemunha porque era vista como uma prostituta, e não como uma vítima de violência sexual”, comenta Teixeira.
Para a promotora, o caso de Mariana deve servir como exemplo para outros casos de violência sexual, servindo para a criação de políticas públicas: “o sistema de justiça não é suficiente para dar conta de tudo isso. Nós precisamos de saúde, da psicologia, da psiquiatria, do IML, para que nós possamos expor o mínimo possível essas vítimas de violência sexual”, explica Teixeira.
Teixeira ainda afirma que a violência sexual não é uma questão de educação, não está relacionada à como a mulher se comporta: “não é uma questão relacionada à como eu me visto, com quem saio ou deixo de sair. Está relacionada à cultura do estupro, a sociedade machista e misógina que faz muito para as mulheres”, explica a promotora.
Sobre a profissional:
Márcia Teixeira é promotora no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, mestra em Ciências Sociais, especialista em Direitos Humanos e estudante de Psicologia.
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