Produtores e cienastas se queixam da falta de investimento e incentivos para produções que evidenciem o Nordeste e a representatividade
No período anterior ao Governo do atual presidente Jair Bolsonaro, o Brasil tinha um investimento considerável nas áreas sociais, culturais e trabalhistas. Desde o ano de 2013, por exemplo, foram atribuídos R$ 300 milhões para a preservação do patrimônio cultural das cidades históricas. No entanto, ações significativas contra a cultura estão desequilibrando este cenário.
O Projeto de Lei 3203/2021, enviado pelo poder Executivo à Câmara de Deputados, contribui para diminuição de mecanismos de financiamento da indústria cultural. Junto ao projeto, há cortes de artigos importantes da Lei do Audiovisual, como o que propõe a dedução do imposto de renda do valor aplicado na produção cinematográfica.
Além disso, há a extinção do regime especial de tributação para desenvolvimento da atividade de exibição cinematográfica (Recine), a qual também é responsável pelo investimento na construção, manutenção e abertura de novos cinemas.
Devido esse cenário, o repasse estatal fica prejudicado. Segundo o “Anuário do Audiovisual Baiano 2019/2020”, houve uma diminuição nos valores investidos no audiovisual do estado. Em 2018 foram investidos mais de R$ 50 milhões, caindo 85%, para apenas R$ 7,3 milhões, em 2020.
Sertão baiano e a falta de investimento local
Danilo Victor, produtor de TV e cineasta independente, tem uma característica de produção muito voltada para a realidade do sertão. “Costumo dizer que o cinema que eu faço é de nostalgia, gosto de explorar muito as vivências e a história das pessoas, transformando isso em ‘vídeo da vida’”, afirma.
Segundo o produtor, a região sisaleira, no sertão da Bahia, a qual retrata nos documentários e curta-metragens, é rica culturalmente, mas pobre em incentivos fiscais, por isso é de extrema importância dar voz a este local, às pessoas que nele habitam e à cultura de uma forma que valorize o povo e que mostre de onde ele veio.
Para Danilo, conseguir um investimento local, principalmente se tratando de uma cidade do interior, é muito difícil, já que a produção profissional exige valores de custos altos.
“O que a gente precisa é mais de um incentivo fiscal, a partir das leis, como a lei Rouanet, além de editais que incentivam a deduzir um imposto da parte cultural”, explica o produtor.
“A Ancine, órgão nacional que regulamenta o cinema e a televisão, é muito partidária, com cunho religioso forte, então raramente aprova filmes com temáticas LGBTQIA+ ou que critiquem o governo”, afirma.
Danilo ressalta ainda que o desestímulo do Governo representa mais um impasse para o fomento à cultura. Além disso, destaca que a atual Lei Rouanet representa um outro obstáculo à produção do cinema brasileiro.
“Acredito que essa lei é mais uma forma que o Governo atual tem de não demonstrar interesse para nós, isso é desastroso”, considera o produtor.
Dessa forma, o impacto para o cinema independente é muito maior, já que os repasses de verbas federais, destinados à cultura, aos estados e aos municípios tornam-se quase nulos e, segundo conclui Danilo, “nós, que trabalhamos de forma independente, somos bastantes guerreiros, porque estamos fazendo de tudo para poder produzir, o mínimo que seja”.
Coletivo de cinema negro e o fomento à cultura no Brasil
Em 2016, Djalma Calmon, sócio de uma produtora de cinema negro da capital baiana e diretor de cinema, junto com dois amigos, por meio do curso de cinema livre da Universidade Federal da Bahia (UFBA) fundaram a produtora audiovisual “Sujeito Filmes”.
A produtora foi criada a partir de “uma necessidade de contar histórias afro centradas dentro do audiovisual”, destaca Calmon.
Segundo o sócio da Sujeito Filmes, os coletivos audiovisuais, voltados para a temática afro centrada, constituem um importante núcleo de produção audiovisual na Bahia, reiterando a importância e o destaque que esses coletivos vêm recebendo no cenário nacional.
Para Calmon, o Governo Bolsonaro provocou uma ruptura na estrutura audiovisual do país, devido à redução de incentivos fiscais e de representação cultural do povo.
De acordo com o produtor, “a destruição da Ancine é proposital e faz parte do plano governamental. Na Bahia, este processo [de incentivo governamental] se torna ainda mais difícil, já que está descentralizado dos grandes eixos de investimentos culturais”.
“Os poucos recursos encontram-se totalmente centralizados no eixo Rio-São Paulo, então é preciso criar estratégias de colaboração entre os coletivos para participar de concursos de roteiros, com o intuito de se destacar no eixo principal e conseguir financiamento para produzir os materiais locais”, afirma Calmon.
As produções audiovisuais no país, especialmente as que retratam o Nordeste e que exploram as pautas negras são mais inacessíveis. Sobre isso, Calmon considera que os editais do governo, apesar de serem instrumentos importantes que norteiam as produções, principalmente aos que estão começando, são ainda objetos burocráticos e, por isso, não tão acessíveis.
Segundo o diretor, os editais possibilitam a captação, mas a parte burocrática mostra-se um verdadeiro empecilho à produção, sobretudo para aqueles que estão em lugares mais distantes.
No interior, por exemplo, as produtoras independentes são atingidas não somente pela ausência de instrução, mas também pela parte técnica que uma produtora precisa ter para conseguir participar de um edital.
“Nunca consegui usufruir de nenhum edital para produção, mas já fui contemplado por edital de premiação de produto já feito, de curta já produzido, em que você inscreve o material e é premiado”, declara o diretor.
O sócio da Sujeito Filmes pontua ainda que: “o plano do governo é sistemático para destruição da produção audiovisual no Brasil, com o sucateamento da Ancine. Se antes esses recursos já chegavam com muita dificuldade no Nordeste, hoje esse sistema morreu”, finaliza.
Vale lembrar que o setor audiovisual, no Brasil, movimenta bilhões na economia e, na Bahia, em torno de 200 milhões de reais por ano, segundo o “Anuário do Audiovisual Baiano 2019/2020”.
Calmon lembra que existe uma cadeia que gira economicamente em torno do audiovisual, gerando lucro.
“Os profissionais pagam impostos e consomem serviços. O dinheiro do incentivo para a produção no setor retorna por meio da economia […]. Não é gasto de dinheiro, é investimento com retorno garantido”, reitera o diretor.
Calmon destaca que por uma restrição de recursos e encolhimento do mercado, quando acontecem esses investimentos, sejam eles no setor privado ou na esfera pública, acabam sendo centralizados nas grandes produtoras.
“Então, esse dinheiro que é pouco, não consegue ser distribuído, não consegue chegar a todas produtoras”, ressalta.
Representatividade
O diretor baiano destaca ainda a importância do cinema preto na cultura nacional e afirma que o audiovisual negro é “mais do que resistência, é um cinema de existência”. Segundo Calmon, antes de tudo, o povo negro precisa se fazer presente.
“A gente existe, a gente produz coisa com muita qualidade, nós vencemos prêmios, disputando em diversas categorias, nossos filmes são bons, são reconhecidos pela crítica, e pelo público”, afirma.
O diretor pontua que “quando um preto vai para o cinema e ele vê outro preto na tela, ele se identifica com aquele personagem, se identifica com aquela história, porque aquela história se parece com a dele”.
“É importante que negro seja visto na tela, não com uma arma na mão, mas com um diploma, com um carro bacana, tendo um emprego massa”, destaca.
Segundo Calmon, os negros e negras querem se ver em papéis importantes, de protagonismo, ocupando posições de poder nessas histórias, não escanteadas, em segundo plano, sendo esse o objetivo que a Sujeito Filmes se propõe a fazer.
“O investimento em Cultura precisa partir do Governo, o Brasil é um país rico culturalmente, mas a grande questão perpassa a seletividade da cultura, da informação que não é acessível para todos, consumir cultura é caro”, pontua o fundador da Sujeito Filmes.
Calmon destaca ainda que ir ao cinema, frequentar shows fechados com ingressos pré-pagos, ir a peça de teatro em que você não gasta somente a entrada, mas sim o transporte, o lanche, são caros, e que seria necessário que o Governo fizesse esse investimento para a própria população.
“Não é uma política de pão e circo, aqui no Brasil não temos nem pão, e nem o circo, então a gente precisa investir em Educação, em Cultura”, pontua.
“Estudar no Brasil é um privilégio, acessar a cultura é um privilégio, então precisamos ampliar para que esse privilégio chegue a todas as pessoas e passe a ser algo comum a todos”, conclui Calmon.
Repórteres: Rafaela Góis, Rayssa Carvalho e Rodrigo Portela
Revisão: Antônio Netto