Daniel Bahia e Pareta Calderasch falam sobre o começo de suas carreiras e a paixão e desafios de viver da arte nas ruas
Por Lis Gabrieli
Revisão: Edvânio Junior
Daniel Bahia é um cantor, guitarrista e poeta soteropolitano que costuma se apresentar em praças e transportes coletivos, tanto em Salvador quanto no interior do estado. O artista conta que por ser 100% independente, tinha dificuldades na hora de conseguir trabalhos em shows e esse foi motivo que o incentivou a se apresentar nas ruas.
“Na arte de rua eu vi a oportunidade de poder divulgar e demonstrar um pouco mais o meu trabalho do que nos palcos, uma vez que eu sempre estava nos palcos apenas como guitarrista para outras bandas, mas eu já cantava e ninguém me reconhecia como artista ou como cantor. Eu não tinha essa oportunidade, um espaço para estar me apresentando na época, mas dentro dos coletivos e nas ruas pude apresentar meu trabalho”, conta o cantor.
Hoje em dia, Bahia está mais focado no espaço das ruas do que nos palcos, pois segundo o cantor, a arte de rua atualmente é “o alicerce de sua arte”, e completa dizendo que é através desse trabalho que consegue pagar suas despesas e divulgar seu trabalho em busca de um alcance maior.
Segundo pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), 53,5% dos artistas que estão no top 200 do Spotify, são autônomos. Isso mostra como o mercado de pequenos artistas independentes está crescendo e ganhando mais visibilidade.
As ruas acabam se tornando um espaço e oportunidade de visibilidade para a divulgação de trabalhos artísticos. “Se eu fosse depender de mostrar meu trabalho apenas em palcos e grandes eventos por aí, eu iria parar, mas a arte de rua é uma forma de fazer meu trampo circular mais rápido”, completa Bahia.
O público também se torna um diferencial, pois nos palcos e shows de grande porte, as pessoas já chegam preparadas para curtir a atração que foram prestigiar, diferente de quando está passeando e encontra uma apresentação ao acaso.
O guitarrista confessa: “Uma das coisas que mais me motiva, e que deve motivar todo artista que está nesse espaço mostrando sua arte, é de fato a reação das pessoas que gostam, das pessoas que se sentem tocadas por aquilo, porque é uma troca muito sincera e direta.”
Desafios durante a trajetória
A pandemia foi um grande desafio para trabalhadores autônomos, no meio artístico não foi diferente. Bahia conta que durante esse período existiu um auxílio de trabalho para algumas categorias prejudicadas com o lockdown.
Grupos de artistas de rua e vendedores ambulantes se uniram para solicitar ao Governo esse auxílio, mas resposta dada foi de que não seria possível, pois o artista de rua não era reconhecido como uma profissão.
O soteropolitano desabafa: “Existe uma falta de olhar atencioso por parte do Governo, que eu acredito que poderia realizar um projeto de lei, algo que fomentasse a nossa atividade.”
O cantor completa: “Há um olhar de pouco conhecimento ainda pela maioria das pessoas no geral, e algumas manifestam reações as vezes desagradáveis, de olhar como se fosse algo inferior, pelo contexto de estar tocando em um lugar sem estrutura, isso meio que ofusca o fato de você ser um artista, mesmo fazendo um trabalho excelente.”
A desvalorização pelo excesso
Bahia conta que um dos principais desafios enfrentados por quem deseja seguir o caminho artístico, principalmente na Bahia, é a “dificuldade por conta do excesso”.
“Se a gente tem de mais e a todo tempo, a gente tende a não dar muita importância, e também tem aquilo: todo mundo é bom. Então pra você ter destaque, você acaba precisando estar em um nível inimaginável, porque junto com você existem outros artistas que também estão todos ali tentando buscar um lugar ao sol, pelo mesmo caminho que você escolheu”, explica.
O cantor conta que teve a oportunidade de se apresentar em outros locais, como em Aracaju e em Feira de Santana, onde sentiu um grande acolhimento e espaços que precisam de preenchimento, e que, segundo ele, não apresentam esse excesso.
Mesmo com os desafios no caminho, Daniel Bahia continua seu trabalho. Seu atual projeto é o “Sunset”, que mistura músicas populares e autorais, e acontece todas as sextas e sábados, no Monumento da Cruz Caída, no Pelourinho, e aos domingos na Ponta do Humaitá, sempre das 15h às 18h.
O caminho até os coletivos
Pareta Calderasch é poeta, ator e artista que se apresenta no transporte coletivo de Salvador. Sempre foi envolvido com manifestações artísticas e muita poesia ao longo de sua vida. Nos anos 2000, utilizava a internet para compartilhar suas poesias.
“Eu era gago, eu não conseguia falar um bom dia, não atendia telefone, não conseguia falar alô, não pedia informação na rua, então eu fiz fonoaudiologia. E recitar poesia lendo, sem as pessoas me verem eu conseguia! Então comecei a fazer um sarau nas salas de áudio do Yahoo”, conta Calderasch.
Uma curiosidade é que, durante a adolescência, Sérgio Silva ficou conhecido como “Pareta” em um grupo da internet, em que ele e seus amigos “puniam” aqueles que utilizavam a internet para fazer mal aos outros. Esse nome artístico foi sendo usado nas redes sociais e mais tarde levado para as ruas.
Sua primeira experiência com arte de rua foi através do grupo “Poetas da praça”, uma união de artistas, de resistência desde os anos 60, que se apresentavam na praça da Piedade. Foi no final de 2008 que o poeta começou a se apresentar nos coletivos de Salvador.
Mas o processo não foi simples, no começo, a timidez e o medo de gaguejar foram um empecilho. “Foi um processo de autoflagelação, eu ia para a rua com a intenção de me apresentar no ‘busu’, passava o dia com a maquiagem, a cara pintada e não conseguia nem entrar no ônibus”, relata.
O artista conta que para tentar vencer a timidez resolveu sair de casa apenas com o dinheiro da ida, pois assim, caso quisesse voltar para casa iria precisar se apresentar. Mas isso não acontecia, e às 20 horas voltava para casa andando, do Rio Vermelho até São Caetano.
Amizades que incentivam
Apesar das dificuldades, Calderash foi incentivado por amigos que trabalhavam se apresentando em coletivos na época, como Felipe Mago e Idenilton.
Seu amigo Ideniton o ajudou na época em que queria recitar poesias no palco. “Ele me dizia assim: suba no palco, faça, eu vou gravar o texto que você vai recitar, e se você travar eu entro e a gente finge que foi combinado, vergonha você não passa! E eu não gaguejei uma vez quando ele estava do meu lado”, conta o artista.
No momento em que Pareta decidiu recitar poesia nas ruas, foi incentivado por esses mesmos amigos. O artista resolveu largar seu trabalho de freelancer e focar em se apresentar nos coletivos. Segundo ele, se fizesse tudo apenas como um hobbie não iria conseguir vencer sua dificuldade e a partir do momento que esse fosse seu sustento, teria que fazer aquilo.
“Eu pensava: ou eu forço de vez, ou eu vou ficar só fingindo que eu faço. Então eu larguei tudo e fui para o busu”, realta.
História com a poesia
Uma das contribuições na carreira de Silva, que serviu como combustível para construir suas poesias, foi seu professor Germano Machado, que dava aulas no Círculo de Estudo, Pensamento e Ação (CEPA), um movimento cultural com aulas, convidados, oficinas para escrita de poesias e saraus.
Calderasch enfatiza que pode aprender muito com seu professor e que leva esses aprendizados até hoje. “Entendi que o poema não é feito para dizer X e Y, o poema fica vivo quando você se sente nele e outra pessoa se sente. Quando você sente o que é seu dentro dele”, conta.
Abertura de shows
Sérgio Silva, já participou como artista convidado para recitar poemas e abrir vários shows, como exemplo, shows da banda Escambo. Por conta desses shows, ele se tornou o apresentador do Rock Concha, por três anos, e pode apresentar seus ídolos, como Titãs e Raimundos.
“Raimundos era uma situação engraçada, era a banda que mais me encurralava, no primeiro dia que eu fui tinha Raimundos, mas eles perderam o voo e se atrasaram, então me falaram para segurar a onda do público e eu fui entrar de novo com poesia, foi texto e mais texto, e enquanto isso a público começou a chamar por eles”, relembra Silva.
“Como perderam o voo, tiveram que alugar um jato, vieram com a PM, e nesse processo me falaram que eu tinha que entrar de novo e fazer tudo mais uma vez, mas às 21h30 o som precisava encerrar. Os Raimundos chegaram uns 10 minutos antes do horário, colaram uma música na outra, a vizinhança ligou pra polícia, mas no final deu tudo certo, eles são muito bons e o público saiu feliz de lá”, acrescenta Silva.
Mudanças ao longo do tempo
A medida que anos se passam, o cenário muda e em relação às performances em transportes públicos, não foi diferente.
Silva relata que quando começou trabalhar com poesia nos ônibus, a quantidade de artistas seguindo o mesmo caminho era bem menor, o que é positivo, porque significa que atualmente tem mais pessoas compartilhando seus trabalhos. Mas ao mesmo tempo, o dinheiro que antigamente fazia em um dia, reduziu bastante.
“Antes o transporte era no dinheiro, então todo mundo sempre tinha alguma coisa, mas hoje é no cartão de passagem. E tem outra questão, hoje em dia é a época do PIX e as pessoas andam apenas com cartão”, explica o ator.
Atualmente, a arte de rua não é a principal fonte de renda do poeta, ele trabalha com design gráfico e faz suas apresentações como uma forma de absorver conhecimento, mas conta que nos dias de hoje seria complicado se manter apenas com essa fonte de renda.
Pareta diz que tem planos de vender livretos de poesia nos ônibus e voltar a fazer apresentações com mais frequência, mas esses são planos futuros.
“O busu foi escola… eu tive o aprimoramento da minha forma de recitar que nenhum teatro de palco dá, gosto de falar olhando olho no olho, sentindo a relação com as pessoas que estão ali naquele momento, tentando tocar no sentimento delas, eu aprimorei isso drasticamente. Trago isso para minhas apresentações sempre, e sempre que eu vou pro busu, é pra me reconectar com essa forma de recitar”, conclui.