Débora Santos e Marcos Cajé / Foto: Reprodução – Instagram @debora_julianne
Autores baianos, Débora Santos e Márcio Cajé, destacam como a literatura infantil está mudando o olhar sobre a negritude
Por Lucas Alencar e Dalila Fonseca
Revisão por Júlia Ma
No Brasil, a obrigatoriedade do ensino da cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar abriu espaço para o crescimento de livros infantis com protagonistas negros. Essas produções têm fortalecido a autoestima e o senso de pertencimento de crianças pretas, ajudando-as a reconhecer positivamente sua negritude. Ainda assim, escritores afro-brasileiros enfrentam falta de visibilidade e apoio das editoras.
Representação que transforma
Para Marcos Cajé, escritor de literatura afrofantástica e afroafetiva, criar histórias com protagonismo negro é uma missão que atravessa sua trajetória. Ele lembra com emoção de uma das primeiras vezes em que percebeu o impacto de sua obra. Uma professora da cidade de Ibititá, no interior da Bahia, contou seu livro Iboias Princesas em sala de aula.
Cajé conta que recentemente um aluno com dificuldades de aprendizagem se inspirou na personagem Imani, protagonista de um de seus livros: “Se ela conseguiu superar tudo isso, eu também vou conseguir melhorar minhas notas”. O menino passou a se dedicar mais e suas notas começaram a subir. Para o autor, isso mostra como “a literatura tem vários suportes e um deles é inspirar e curar”.
A pedagoga Débora Santos vive situações parecidas. Autora de ‘Eu Amo Meu Black’, acompanha de perto o efeito que suas histórias têm sobre os estudantes da rede pública. Em uma de suas contações de história, uma menina se aproxima para dizer que, depois de ouvir a história da personagem, entendeu que seu cabelo também pode ser bonito, leve e cheio de vida.. Para Débora, quando uma criança negra se reconhece em uma personagem, ela recebe a mensagem de que sua aparência, sua cor e sua história importam.

Débora Santos / Foto: Acervo pessoal
Protagonismo sem dor: novas narrativas para novas infâncias
Um dos pontos centrais levantados por Marcos Cajé é a importância de que o protagonismo negro não seja limitado à dor ou ao racismo. Ele defende que personagens negros podem e devem ser retratados como heróis desde o início, vivendo aventuras, alegrias, conflitos comuns às infâncias, sem que a narrativa parta da baixa autoestima.
“Não queremos mostrar a saga do herói diferente. Nossos personagens não precisam começar tristes, rejeitando o cabelo ou a cor da pele. Nós somos grandes cientistas, reis e rainhas, inventores. Isso tem que aparecer do início ao fim” declara Cajé.
Essa mudança narrativa não apenas evita gatilhos dolorosos, mas amplia o imaginário das crianças negras. Ao se verem em posições de poder, coragem ou magia, elas passam a acreditar que esses lugares também são seus.

Marcos Cajé / Foto: Acervo pessoal
Escola e família: quem coloca esses livros nas mãos das crianças?
A escola e a família ocupam papéis complementares nesse processo. Débora Santos lembra que ambos são “os primeiros espelhos” que uma criança encontra, e que esses espelhos precisam reafirmar sua identidade de forma positiva. Escolher livros com protagonismo negro é uma forma de dizer explicitamente ou não que aquela criança tem valor.
As escolas, impulsionadas pela Lei 11.645/08, têm buscado incluir obras que valorizem a cultura afro-brasileira e indígena. Mas muitas vezes esse movimento ainda se concentra apenas em novembro, durante o Mês da Consciência Negra. Para Cajé, isso é um problema: “A nossa literatura precisa ser lida o ano inteiro. Ela é para todos, não só para crianças negras” A naturalização da presença de narrativas negras na escola e na casa de famílias brancas, indígenas ou asiáticas é parte essencial dessa mudança cultural.
Racismo editorial: a barreira invisível que limita a circulação dessas histórias
Tanto Marcos quanto Débora relatam dificuldades no mercado editorial. Cajé fala que existe resistência de algumas editoras em publicar autores negros, o que mantém poucas obras com protagonismo negro nos catálogos e fortalece o “racismo editorial”. Débora confirma essa realidade ao dizer que enviou ‘Eu Amo Meu Black’ a várias editoras mas não recebeu respostas, só conseguiu avançar após participar de uma feira literária.
A pedagoga enfrenta um silêncio semelhante para lançar seu segundo livro sobre capoeira feminina. Ainda assim, os autores reconhecem avanços significativos nos últimos 15 anos, com o surgimento de novas editoras negras. Acreditam que há público e demanda, só falta romper de vez essas barreiras.

Débora Santos / Foto: Acervo pessoal
A literatura como caminho de cura para crianças e para toda a sociedade
No fim das contas, o impacto dos livros infantis com protagonismo negro ultrapassa o campo pedagógico. Trata-se de um movimento que atinge famílias, escolas e comunidades inteiras. Débora, que acompanha depoimentos emocionantes e dolorosos de adolescentes que sofrem racismo diariamente, lembra que a literatura também funciona como amparo.
Em suas contações de história, meninas e meninos se sentem confortáveis para desabafar, chorar e reencontrar sua força. Marcos reforça: “Quando fazemos literatura de qualidade, ela potencializa a caminhada da criança e do adulto. Ela emociona dos pequenos aos anciãos” A literatura, portanto, se torna um espaço de reconstrução: do olhar para si, do olhar para o outro e da forma como o Brasil compreende sua própria história.
Livros com protagonismo negro não são apenas importantes para crianças negras são fundamentais para todas as crianças. Eles ensinam respeito, empatia e diversidade. Mostram que ser negro não é exceção, nem problema: é potência. E para cada menina que solta o cabelo pela primeira vez, para cada menino que decide acreditar em si, para cada família que muda sua forma de enxergar a beleza, esses livros cumprem seu papel.
A infância precisa e merece histórias que a fortaleçam. E quando essas histórias são contadas por quem vive, sente e celebra a negritude, o efeito é ainda mais transformador. Os livros, afinal, não mudam só leitores. Mudam mundos inteiros.

Marcos Cajé / Foto: Acervo pessoal (@marcoscajeoficial)
