Entre procissões e moquecas, a sexta-feira da paixão mostra a mistura viva entre o sagrado católico e os sabores das religiões de matriz africana
Por Ariel assis
Revisão Maria Fernanda Cardoso
A comida à base de azeite de dendê é parte da tradição na casa dos baianos durante a Sexta-feira Santa | Foto: Freepik
Fruto do sincretismo religioso proveniente da colonização, em que a fé cristã se entrelaça com as religiões de matriz africana, o feriado da Semana Santa tem um sabor diferente na Bahia. Ele marca a forma como as diferentes culturas que aqui se chocaram exercem uma influência que atravessa não só a história, mas também elementos culturais, como a culinária.
“Houve uma grande apropriação pelos cultos católicos, uma forma de buscar proteger e manter suas tradições aos quais eram perseguidas. Essa foi e é a maior razão para que tenha mantido essa tradição de culto e culinária” explica Iuri Batista, praticante da umbanda.
Por meio de uma adaptação gastronômica surgida dos países africanos, na capital da Bahia, a comida feita com azeite de dendê e frutos do mar ajuda a cumprir a regra cristã de não comer carne durante a Sexta-feira Santa. Assim, após séculos, independentemente da religião, o baiano não resiste aos temperos da sua culinária.
Em Salvador, o feriado tem um impacto econômico, pois, neste período, a busca por ingredientes típicos, como azeite de dendê, peixe e camarão, apresenta uma grande demanda. Um dos pontos mais famosos para comprar os ingredientes é a Feira de São Joaquim, que conta com mais de 7.400 feirantes, cujas vendas aumentam durante o período.
Essa fusão entre fé, história e comida revela muito mais do que hábitos religiosos: mostra como o povo baiano transforma tradição em celebração. Na Bahia, comer é também um ato de memória e resistência, e na Semana Santa, cada prato conta uma história ancestral.
A quaresma e o impacto da tradição cristã
A Quaresma é um período de reflexão e penitência para os devotos do cristianismo. Durante esse tempo, alguns fieis adotam novos hábitos alimentares, sendo a restrição ao consumo de carne vermelha uma das práticas mais comuns. Além disso, diversas manifestações religiosas ajudam a movimentar o turismo no estado.
Algumas tradições culturais se destacam, como os espetáculos da Paixão de Cristo em Bom Jesus da Lapa, que atraem muitos fieis. A famosa Feira de Caxixis em Nazaré celebra a música tradicional, enquanto a procissão do fogaréu em Serrinha ilumina as ruas com devoção. Essas manifestações refletem a rica herança cultural do estado durante as festividades religiosas.
Segundo a Secretaria de Turismo do Estado da Bahia (Setur-BA), em 2023, o turismo religioso atraiu mais de 5 milhões de pessoas ao estado, injetando mais de R$6 bilhões na economia, o que reforça o papel dessas celebrações como parte essencial da identidade e do movimento econômico local.
Em Salvador, as tradições ligadas à quaresma impactam a rica mistura cultural da cidade, especialmente na culinária. Durante esse período, a fé cristã e a restrição ao consumo de carne se transformam em pratos saborosos, que incluem não apenas o famoso pescado, mas também as tradicionais comidas de azeite de dendê. Essa combinação de sabores representa a herança dos diversos povos que formam a identidade baiana e reflete até mesmo nas religiões de matriz africana.
Dessa forma, sabemos que esses hábitos alimentares estão ligados a essa herança, mas podemos nos questionar: como a tradição cristã reverbera nas religiões de matriz africana?
São todas as religiões de matriz africana que comemoram a Semana Santa?
Segundo a Secretaria Municipal da Reparação (SEMUR), estima-se que em 2024, Salvador contará com cerca de 1.200 terreiros cadastrados. Esses espaços são fundamentais para a preservação da cultura trazida pela diáspora africana e ajudam a compreender como certos hábitos foram assimilados pelos soteropolitanos.
Na Bahia, o candomblé, religião de matriz afro-brasileira, e a umbanda, caracterizada pelo sincretismo religioso, transcendem a espiritualidade e a fé, manifestando-se em hábitos que muitas vezes passam despercebidos no cotidiano. Embora ambas as religiões celebram o feriado cristão durante a quaresma e a Sexta-feira Santa, cada terreiro possui seu próprio calendário e tradições.
Elizete Macedo, costureira e praticante do candomblé, relata que no terreiro que frequenta, há o costume de preparar comida baiana na Sexta-feira da Paixão e distribuí-la para a comunidade. Uma das tradições inclui fazer uma oração do Pai Nosso antes de iniciar a festa com cantigas e pontos, sem a prática de se privar da carne vermelha.
“Na quinta à noite, acontecem algumas práticas da religião; na sexta de manhã, já começam os preparativos da comida baiana, e no sábado de Aleluia ocorre a festa de Exu. No domingo, a casa fica fechada”, explica Elizete.
Essa realidade representa apenas um dos muitos terreiros existentes na Bahia, cada um com suas próprias tradições. “Eu vou ao terreiro por conta do calendário, e sábado tem festa, mas não por causa da Semana Santa”, diz uma praticante do candomblé que preferiu não se identificar.
Para os adeptos das religiões de matriz africana, a data pode ter diferentes significados, resultando em tradições variadas entre os terreiros. As religiões cristãs também apresentam variações na forma como celebram essa data.
Assim, como em todas as tradições, nem todas as práticas e procissões são seguidas rigidamente. Essa flexibilidade é observada tanto nas religiões cristãs quanto nas de matriz africana. Contudo, quando se trata de comida na Bahia, a Sexta-feira Santa é uma unanimidade. A tradição da culinária feita com dendê e elementos típicos permanece forte nas casas baianas.