Por Marco Dias
Revisor da AVERA
*Este é um texto de opinião, em que as posições expressas são de responsabilidade exclusiva de seu autor(a).
“A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”
Arthur Fleck
O Batman, na humilde opinião do escritor dessa resenha, é o maior herói de todos os tempos. Em termos de representação na cultura pop, são notórios os símbolos atribuídos ao personagem, com inúmeros produtos em todos os departamentos possíveis.
Como fã, tenho uma coleção especial dedicada ao herói, incluindo filmes, action figures, jogos, camisetas, utensílios domésticos, dentre outros.
Como um grande herói sempre possui um vilão à sua altura, com o Batman, não seria diferente, muito pelo contrário: há uma galeria inteira destinada aos supervilões do Homem Morcego.
Charada, Duas Caras, Pinguim, Espantalho, Capuz Vermelho, Bane, Hera Venenosa, Ra’s al Ghul, Exterminador e Arlequina são alguns dos nomes associados ao personagem quando se pensa em antagonismo.
Contudo, o maior rival do Batman e, consequentemente, o maior vilão de todos os tempos é o Coringa, um personagem que é o completo oposto do herói. Ao longo dos oitenta anos da história do Batman, o Coringa foi representado de diversas formas, em diferentes mídias, desempenhando sempre o papel de antagonista.
Interpretado por atores como Cesar Romero (na série de televisão da década de 60), Jack Nicholson (no filme de 89 dirigido por Tim Burton), Heath Ledger (ganhador do Oscar póstumo pelo papel no filme de 2008, dirigido por Christopher Nolan) e Jared Leto (no filme do Esquadrão Suicida, de 2016), além de contar com Mark Hamill dublando o personagem nas animações e Cameron Monaghan (o Coringa da série Gotham, que teve seu desfecho nesse ano).
Em meio à tantas atuações, o Coringa sempre esteve atrelado à imagem do Homem Morcego, aparecendo nas sombras e obtendo seu destaque pelo carisma (gostar do Coringa é uma espécie de Síndrome de Estocolmo coletiva – risos), motivo que sempre me fez duvidar da existência de um filme solo do vilão.
Por considerar a atuação de Heath Ledger impecável e definitiva, cometi o erro de colocá-lo em um patamar inatingível. Quando Jared Leto fora anunciado como o Coringa do Esquadrão Suicida, pensei: “bom, se tem alguém que pode substituir o Ledger, esse alguém é o Leto”. Ledo engano. Não em função da atuação do cantor do 30 Seconds to Mars (uma vez que ele mal teve tempo de cena para desenvolver seu talento), mas por considerar uma substituição do papel.
O que o Heath Ledger fez jamais será esquecido, contudo isso não torna o personagem intocável. E Joaquim Phoenix veio para comprovar essa teoria.
Coringa (Joker, 2019) é um filme adaptado de histórias em quadrinhos, mas que possui uma linguagem singular. Com a proposta de ser um filme cult – de arte – se distancia do bagunçado universo cinematográfico da DC Comics desde o começo, ao optar por uma abertura sem o logo da companhia (mas, apesar disso, o longa faz sutis referências ao decorrer da trama, a começar pela ambientação de Gotham e os personagens).
O letreiro em amarelo faz alusão à Táxi Driver, uma das referências cinematográficas de Martin Scorsese que o filme faz uso, ou melhor, traça um paralelo entre as obras. O filme começa com um Joaquim Phoenix raquítico, forçando um sorriso com os dedos indicadores, ao puxar os lábios para a altura das bochechas. Ele dá vida a Arthur Fleck, um comediante frustrado, que trabalha como palhaço em alguns “bicos”, seja com anúncios para lojas em promoção, seja em hospitais para animar crianças com câncer.
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Logo no início, durante um desses trabalhos como palhaço de rua, divulgando a promoção de uma loja, um grupo de adolescentes arranca o cartaz que está em suas mãos e foge. Arthur vai correndo atrás do grupo, mas é agredido, ficando no chão, se contorcendo de dor.
Ele, então, vai ao encontro de sua psiquiatra, onde, rindo, confessa suas dores e angústias.
Porém, distraída, a psiquiatra não lhe dá a devida atenção. Para ela, ele é só mais um paciente problemático. Descobrimos que Arthur possui uma condição especial, um transtorno psicológico que o faz rir mesmo diante das condições mais adversas. Ou seja, mesmo com vontade de chorar, ele não consegue controlar o riso. Além disso, fica claro que ele sofre de depressão e tenta, ao máximo, esconder a doença.
Em seguida, Arthur vai para casa. Chega em seu prédio, olha a correspondência (não há nenhuma carta) e sobe para encontrar sua mãe. Penny Fleck (Frances Conroy) chama seu filho de “Happy”(Feliz) e, quase de maneira mecânica, insiste em requerer a ajuda financeira de Thomas Wayne (Brett Cullen), por conta dos anos de serviço prestados como doméstica na mansão Wayne.
Arthur está tão magro que é possível ver as suas costelas saltarem para fora do seu corpo, causando uma sensação de completo desconforto. A fisicalidade entregue por Joaquim Phoenix é de assustar. Você se sente mal pelo personagem, ainda que questione suas atitudes.
A Gotham retratada no filme é uma cidade caótica, imunda, onde a marginalidade reina, se sobrepondo sobre todos os órgãos e setores sociais. O Estado é corrompido e o poder está nas mãos do crime. Para os fãs das HQs, essa é a mais fidedigna Gotham City retratada em uma obra audiovisual. A violência, a brutalidade, os “invisíveis” para o Estado: tudo está devidamente adaptado para a telona.
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Robert De Niro interpreta Murray Franklin, um comediante renomado que possui seu próprio programa na televisão, com uma grande audiência. O sonho de Arthur é o de ser reconhecido por Murray – e aqui, o filme faz outra alusão à uma obra do Scorsese, O Rei da Comédia, de 1982, onde De Niro interpreta Rupert Pupkin, um aspirante a comediante que faz de tudo para conseguir participar do programa de seu grande ídolo, Jerry Langford (Jerry Lewis).
Arthur é o mais puro reflexo da sentença de Rousseau, de que o homem nasce bom e a sociedade é que o corrompe. Arthur nasceu acreditando que sua missão era fazer as pessoas rirem, mas a sociedade o mostrou que somente a dor desperta algum tipo de sentimento. O caos, a loucura, o clima de instabilidade, todos esses fatores dizem muito mais do que a bondade. O Estado o tratou como um lixo, descartável, jogado ao relento, sem dar o acompanhamento e tratamento adequados.
A maior prova disso foi o mês de setembro, onde inúmeras pessoas postaram em suas redes sociais conteúdos voltados para a campanha de prevenção ao suicídio. Porém, acabou o mês e a campanha é completamente esquecida, pois “a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”.
As pessoas só querem se preocupar com você durante um período específico. No resto do tempo, você precisa ser “normal”. E isso, em maior escala, representa como Arthur se sentiu. “Coloque um sorriso nesse rosto” e viva a sua vida, pois ninguém viverá por você.
Obviamente, suas atitudes são injustificáveis. A decisão de cometer atrocidades cabe somente à você, mas pode sofrer influência de uma sociedade que não dá a mínima para os seus doentes.
Cogitado ao Oscar de Melhor Ator para Joaquim Phoenix, Coringa pode ser o filme que consagra o maior vilão das histórias de super-heróis. Se, tragicamente, Heath Ledger ganhou o Oscar póstumo ao interpretar o personagem em 2008, Phoenix tem a chance de conquistar a estatueta onze anos depois, por sua interpretação em um filme visceral, um completo reflexo da sociedade em que vivemos.
Nota do autor: 10/10
FICHA TÉCNICA:
Coringa (Joker, 2019)
Duração: 121 minutos
Gênero: Crime, Drama
Direção: Todd Phillips
Estrelando: Joaquim Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz
Estreia Mundial: 03 de outubro de 2019
**Texto originalmente publicado no site Canal In