Muito além do assistencialismo, o projeto busca ouvir e contar histórias de pessoas carentes ou em situação de rua, apoiando sua independência financeira
Por Lis Gabrieli
Revisão: Edvânio Junior
Salvador Invisível é uma organização social que busca ajudar pessoas em situação de rua. Indo além do assistencialismo, como entregas de comida e itens básicos, a ação visa exercer a cidadania, os direitos e contar a história daqueles que são invisíveis para grande parte da sociedade, a população em situação de rua.
“Nós contamos a história de pessoas em situação de rua com dois objetivos. O primeiro é dar visibilidade para essas pessoas, mostrar que elas existem, até porque quem não é visto não é lembrado”, explica Lucas Gonçalves, um dos criadores da Salvador Invisível.
Gonçalves relata ainda que não basta dar visibilidade e conta uma passagem quando uma pessoa em situação de rua os questionou: “é bom que você me dá visibilidade, mas o que eu faço com essa visibilidade? Ela mata minha fome?”.
“E aí vem o nosso segundo objetivo, que é lutar pela efetivação das políticas públicas. Todas as nossas ações visam o exercício da cidadania”, completa Gonçalves.
Siga o projeto no Instagram: https://www.instagram.com/ssainvisivel_/
Conhecendo a história
O projeto nasceu a partir da união de ideias de Lucas Gonçalves e Rafael Reis, no ano de 2018, quando Reis retornou de uma viagem à São Paulo, onde conheceu o projeto “SP Invisível”, que realiza ações sociais e conta a história de pessoas que se encontram vivendo nas ruas.
Gonçalves conta que ficou em dúvida quando seu amigo propôs dar início a algo parecido em Salvador, pois não gostou da ideia de usar a imagem dos assistidos para contar suas histórias.
Felizmente, sua opinião mudou quando estava realizando a correção da tese de uma doutoranda, que se chamava “A cidade que ninguém vê”.
“Ela falava sobre três cidades. A cidade visível: que é onde todos tem seus direitos atendidos, e quase nenhum dever, tem a cidade quase invisível, que somos nós, moradores de favelas, que temos quase nenhum direito e muitos deveres. E por fim tem a cidade que ninguém vê, a população em situação de rua”, conta Gonçalves.
O organizador da associação ainda completa com uma frase: “Gabriel Pensador, em uma de suas músicas que são incríveis, cita assim, ‘eu não sou pobre, eu sou podre, eu queria morar numa favela’, se referindo a população de rua. E essa população que está em situação de rua não consegue nem morar na favela, não tem nem condições para pagar uma casa e estar numa favela.”
Aos 17 anos, antes do nascimento da Salvador invisível, Gonçalves participava de uma ação social aos domingos, indo entregar comida e doações na região da antiga fonte nova. Ele explica que um dia notou que chegavam outros grupos de pessoas com doações naquela região, porém os indivíduos assistidos nas ações não iam buscar as doações.
“Aquilo me incomodava, eu perguntei para o pessoal por que eles não estavam indo buscar e eles me disseram ‘Lucas, esses grupos quando chegam aqui, entregam e vão embora. Não sabem nosso nome, nossa história, apenas entregam e vão embora, e vocês não! Vocês têm interesse em nos escutar’, e foi daqui que veio um dos primeiros insights pra a criação da Salvador Invisível hoje”, relata Gonçalves.
Solidariedade X Empatia
Segundo dados do “Projeto Axé”, na cidade de Salvador existem aproximadamente 20 mil pessoas em situação de rua, indivíduos expostos a violências e sem assistência ou garantia de seus direitos. A Salvador Invisível traz a reflexão sobre o termo solidariedade, que significa ser bom, ter uma ação bondosa.
Gonçalves explica: “Ser uma pessoa bondosa é pouquíssimo. Acho que é massa, é interessante, mas é pouco. Porque o ser solidário, muitas vezes implica em você fazer a doação, entregar, ir embora e ficar bem consigo mesmo, de colocar sua cabeça no travesseiro e se sentir massa, sentindo que com isso aqui eu garanto minha vaga no céu, solidariedade é isso”.
Ele relembra uma situação em que a solidariedade o cegou. Antes da Salvador Invisível, participava de uma ação social com pessoas em situação de rua. O grupo costumava entregar pão, queijo, presunto e café com leite, só que um dos assistidos nunca pegava o café, e sempre retirava o queijo e presunto, comendo apenas o pão puro.
“Aquilo me incomodava. Chamei ele num canto e perguntei o porquê ele fazia isso, e ele me falou assim, ‘Lucas, você já me perguntou se eu tenho intolerância à lactose?’, aquilo pra mim foi um murro na boca do estomago, estou dizendo pra ele o que ele precisa, mas eu não perguntei se ele precisa ou pode, a minha solidariedade, o eu ser bom, me cegou. Então a solidariedade muitas vezes pode ser egoísta. A empatia é diferente, é eu me colocar no lugar do outro”, conta o criador do projeto.
Além do assistencialismo
Guia de Mercadoria é um projeto dentro da Salvador Invisível, onde os assistidos recebem educação financeira com os administradores da ação, junto com uma mercadoria para poder vender e, ao longo do tempo, garantir sua independência financeira.
“A nossa ideia é você garantir o seu protagonismo e não depender da Salvador Invisível, ou do Estado, é você depender de você mesmo. Só que não dizemos para você o que você vai vender, é você quem vai dizer para a gente”, conta o organizador do projeto.
Um exemplo dessa ação, são duas ex- assistidas que estavam em situação de rua, mas atualmente trabalham como tracistas no Pelourinho, a partir da Guia de Mercadoria.
O criador da organização social explica: “Eu acredito muito que o assistencialismo é importante, pela garantia do bem-estar social, porém o assistencialismo por si só ele é vazio, a caridade pela caridade na minha opinião ela é nula. O assistencialismo tem que ter um fim, que é a justiça social, e a Salvador invisível segue essa linha de pensamento”
Existe também o “Turistando”, uma ação que surgiu a partir de Seu Lafaiette, um assistido da organização que em entrevista contou que seu maior sonho era poder ir ao cinema para assistir desenho animado, algo que é comum para a maioria das pessoas, mas que se tornou um sonho para aquele que está nas ruas.
“Você é uma pessoa em situação de rua que está ali na região de piedade, mas você não vai no shopping, na praça, não conhece sua cidade, você está ocupando aquele espaço, mas não conhece a história daquele espaço”, relata Gonçalves.
E completa: “A galera da Centenário está naquela região da Barra, mas não vai nem para a praia, são espaços que são democráticos, qualquer um pode ir, mas a galera não vai, e quando vão, vão para trabalhar, para reciclar, carregar um coco, ajudar em uma barraca, mas não para se divertir”.
A ação já conseguiu fechar parcerias com o Teatro Castro Alves e o Teatro Jorge Amado, com ingressos para poder proporcionar esse lazer aos assistidos.
Voluntariado
A Salvador Invisível atualmente conta com 75 profissionais e estudantes de diversas áreas como voluntários. Carolina Pena, de 23 anos, é uma estudante de jornalismo e voluntária desde julho de 2022.
Por conta de sua área, logo se envolveu na equipe de comunicação, além de ter outras demandas, como ir para as ruas e escutar os assistidos e procurar saber as necessidades deles no momento, se têm alguma demanda médica, jurídica.
Pena fala sobre seu sentimento sendo uma voluntária: “É uma sensação muito boa, mas também é uma questão de responsabilidade moral, porque com esse vácuo de políticas públicas e a falta de comprometimento do poder público em relação as pessoas em situação de rua, e também pessoas em situação vulnerável ou minorias em geral, essa lacuna deixada, e muitas vezes nos coloca em uma situação de que somos nós por nós.”
A estudante deixa sua reflexão: “É uma sensação de cumprir um dever como cidadã, porque sem dúvidas pessoas em situação de rua estão entre as mais vulneráveis, e nós temos que fazer nossa parte.”
Mariana Sá, de 22 anos, é voluntária desde 2019 e declara: “O que me marca muito até hoje é que quando eu entrei na ação, a minha ideia de ajudar o outro era a caridade, e o que me marca nessa experiência é entender que a caridade não é suficiente, ela faz a diferença, mata a fome, mantém as pessoas vivas, mas não tira ninguém da rua você ir lá e entregar comida ou roupa, então enxergamos isso, que o diferencial era você tentar dar independência para aquelas pessoas”.