Por Gabriela Lacerda Moraes*
Estudante de Jornalismo da UNIFACS
Foto: Reprodução / Divulgação
**Este é um texto de opinião, em que as posições expressas são de responsabilidade exclusiva de seu autor(a).
Duas irmãs bonitas e na flor da idade se perdem uma da outra numa grande floresta verde, com árvores e folhas altas e selvagens. Assim começa o filme dirigido por Karim Aïnouz.
Diferente da grande maioria dos filmes onde o amor é retratado por um casal de namorados, interesses românticos, ou esposos, aqui está presente pelo sentimento entre duas irmãs – algo que fora explorado há algum tempo no filme infantil Frozen – e a expectativa das duas em se encontrarem é o que liga cada ponta da trama.
Na tentativa de sobreviver à sociedade patriarcal brasileira dos anos 50, as moças são separadas brutalmente uma da outra, tanto pela família, quanto pelos papéis sociais que a sociedade as impunha. Ambas possuíam sonhos que jamais poderiam alcançar na época em que vivam.
Eurídice, que nomeia o livro de onde deriva o filme, é interpretada por Carol Duarte; irmã mais nova, introvertida, obediente e virtuosa, que, na música, segundo a mesma, “desaparecia”.
A alegoria que pode ser entendida como sumir daquela realidade para viver um devaneio com imagens da sua irmã, que o som do piano tocado por ela mesma a permitia. Guida, interpretada por Julia Stockler, era mais velha, ousada e rebelde. A atriz conseguiu com êxito passar para o espectador o sentimento de desejo de liberdade que também inclui um menor pudor, que sua personagem possuía.
Guida retratava em cartas todos os elementos e dificuldades que sua vida como mãe solteira e pobre lhe infringia, na fé e espera que um dia sua irmã, que supostamente era uma famosa pianista em Viena lesse e lhe retornasse o contato.
O filme inteiro é rodeado pelos espectros da pressão e obrigações que a sociedade impõe às mulheres e faz isso de um modo um tanto inovador no cinema brasileiro. Lentamente, por mais que lutem, elas acabam se adequando ao modo de vida que devem seguir, e isso vai acontecendo de forma que parece natural aceitar as imposições, exatamente como na realidade.
Desta maneira tem-se uma certa brutalidade, muito presente nas cenas entre Eurídice e o marido Antenor (Gregório Duvivier) onde há um casamento sem amor, visto porém como algo bonito e feliz pelos outros. As partes de sexo explícito só aumentam o desejo do cineasta em demostrar que a mulher não possuía controle nem mesmo sobre o próprio corpo.
A escalação de Gregório, um conhecido ator de comédia, foi uma escolha peculiar de Karim. O ar risonho do personagem diminuiu a figura de um homem bruto e esculpiu a imagem de um homem comum que seguia os padrões da época e acreditava que aquilo era o certo, era o papel do homem.
A cena de estupro conjugal perturbadora, parece ser amenizada justamente por ser ele quem atua. A rachadura da quarta parede talvez tenha sido em outro momento quando Eurídice pergunta “Você se acha engraçado?” querendo ou não, faz uma alusão a Gregório na vida real.
Voltando ao corpo feminino, mostrou-o também este como moeda de troca. Quando Guida perdeu seus laços parentais por ter sido expulsa da família, virou “a mulher solteira e com filho”. Sem tutela, e sem nada, ela tinha que fazer muito mais, inclusive dar o próprio corpo, em troca de algo.
Guida vai morar em bairros periféricos – que muito me lembraram os antigos cortiços do Rio de Janeiro – sem infraestrutura, com mais pessoas que a capacidade habitacional suportava e obviamente, estas tinham características humildes, onde era claro a baixa renda ou miséria e a falta de escolaridade. A cor dos indivíduos, de pardos à mais negros, também fortalecia a diferença social, já que em 1950 o racismo no brasil e especificamente, no Rio de Janeiro era muito forte.
A personagem Filomena (Bárbara Santos), suporte essencial para Guida nessa nova vida, também denuncia o machismo daquela sociedade. De forma genial, em uma das cenas de poucos segundos, o diretor abordou sobre o fingimento do prazer sexual das mulheres.
A personagem era uma coadjuvante de célebres frases como a notória “Era só gritar ai ai ui ui” que demostrou como o sexo naquela época era inteiramente feito para o prazer masculino. Em “Quem precisa de homem para se divertir” ela coloca em cheque que as próprias mulheres se veem dependentes da figura masculina.
Outra frase de Filomena também objetiva as intenções do filme em relação às mulheres, na parte que Guida conta que sua cria era um menino, Filomena diz “sorte dele”. No sentido de que ele sofreria menos em um ambiente tão hostil com o sexo feminino.
A cidade do Rio de Janeiro acrescenta algo a mais a trama. Não é qualquer cidade dos anos 50, mas a cidade maravilhosa, à época, a capital do Brasil. O clima tropical, que o cineasta fazia questão de ambientar em certas partes do filme podia ser sentido por quem assistia.
As diversas plantas que apareciam nos ambientes; dentro e fora das casas, nas ruas, na praça; pareciam querer ligar o extinto selvagem que havia dentro das duas irmãs mas que era reprimido, com à selva carioca a qual elas viviam. Com um sentido de ambiente selvagem e opressor, onde cada um deveria sobreviver àquela realidade de uma cidade internacional.
As samambaias e plantas de grande porte, que foram inclusive presentes na primeira cena do filme, são plantas de grandes florestas, que alimentam a angústia da falta de liberdade das duas e demonstram uma certa crueldade do filme.
Essa crueldade, nada mais é que a realidade fria e crua, a tentativa de demostrar que a vida é mesmo uma estrada de sofrimento e empecilhos, onde na maioria das vezes o sonhos não são realizados e ainda que você lute, nem sempre vai conseguir o que almeja.
As cidades são selvas nas quais os habitantes devem seguir certos padrões e contentarem-se com os poucos momentos de felicidade, memórias felizes que valem a pena no final de tudo.
*Sob supervisão de Amanda Aouad, doutora em Comunicação e professora de Jornalismo da UNIFACS