Foto: Yago Luís
Entre tradição, resistência e oportunidade, a música erudita ganha novos protagonistas na capital mais negra fora da África
Por Maria Clara de Andrade
Revisão por Maria Fernanda Cardoso
Salvador, a cidade mais negra fora do continente africano, com aproximadamente 83% de sua população preta ou parda, segundo o censo da IBGE de 2022 revela esse traço também na juventude: meninos e meninas negros que crescem e se profissionalizam em diferentes áreas. Em uma capital onde a música pulsa por toda parte, o caminho até a música erudita é menos óbvio, especialmente em um Nordeste historicamente marcado pela falta de incentivo a essa expressão artística. Assim, programas sociais, como Neojiba, o projeto axé e a Pracatum, surgem como pontos de inflexão essenciais para que esses jovens encontrem na música um projeto para o futuro.
Muitos dos jovens que conseguem se manter estudando música em instituições, como a Universidade Federal da Bahia, começaram nesses projetos, onde encontraram pela primeira vez um instrumento, uma rotina de ensaio e uma possibilidade concreta de seguir carreira no universo da música. E com a música erudita não tem sido diferente, esse fenômeno que toma forma na capital baiana vai além de iniciativas institucionais: é um movimento cultural, social e artístico que reflete a presença cada vez maior de músicos negros ocupando espaços historicamente distantes da realidade da maioria da população.
Durante décadas, a música erudita foi vista como um território restrito, elitizado e pouco representativo da diversidade racial da cidade. No entanto, essa percepção vem mudando. Salvador vive hoje uma efervescência singular, marcada pelo crescimento de jovens músicos negros que se afirmam, se formam e se projetam em carreiras nacionais e internacionais. Eles chegam à universidade mais preparados, dominando repertórios complexos e trazendo uma bagagem musical que, muitas vezes, nasce de experiências comunitárias ou de projetos sociais nos bairros periféricos.
‘’ Esses projetos ampliam a visão e a vivência dos integrantes quanto a música em nossa formação como cidadão. De uma visão geral, para ampliar esse conhecimento nos direcionamos a um tipo de formação que nos qualifique a continuar quanto atuante na arte’’ cita, o percussionista, multi instrumentista e cantor Yago Luís
Esse movimento é sustentado por um mercado que, embora ainda pouco visível, é muito maior do que parece. Há violinistas, violoncelistas, regentes, trompistas, percussionistas e professores que surgem de diferentes territórios da cidade e ocupam espaços profissionais variados: orquestras, recitais, produções independentes, aulas particulares, gravações, festivais e coletivos artísticos. Apesar disso, muitas dessas trajetórias permanecem invisibilizadas, tanto pela falta de cobertura jornalística quanto pela ausência de políticas culturais que acompanhem a dimensão real dessa cena.
‘’ É um mercado fechado e estreito. Não são oportunidades abertas a todos. Concorremos com Q.I. O que torna ainda mais fechado por terem os mesmos músicos em vários espaços.’’ diz Yago Luís
Na universidade, essa mudança de perfil é perceptível. Professores relatam que há alguns anos o número de estudantes negros cresceu significativamente, trazendo uma nova dinâmica para o curso de Música. Ao mesmo tempo em que ampliam a diversidade do ambiente acadêmico, esses jovens também enfrentam desafios: desde a obtenção de bolsas e aquisição de materiais até a superação de barreiras simbólicas que fazem parte da estrutura desigual do campo da música clássica. Ainda assim, eles constroem redes de apoio, formam coletivos e criam espaços de prática que reforçam a própria permanência e a de outros estudantes.

Foto: Yago Luís
A presença desses músicos também promove uma ruptura simbólica importante. Ser um jovem negro tocando violino, viola, fagote ou regendo uma orquestra em Salvador é, de certo modo, um gesto político. Eles rompem estereótipos, expandem horizontes e mostram que a música erudita pode ser um território plural. Muitos relatam que a dificuldade não está apenas no domínio técnico do instrumento, mas em enfrentar expectativas e olhares que questionam sua presença naquele espaço. Ainda assim, a recepção do público tem sido cada vez mais positiva: concertos e recitais com maior diversidade racial atraem plateias jovens e curiosas, que se veem representadas no palco de uma forma inédita.
Ao mesmo tempo, novas produções surgem dessa mistura entre formação erudita e identidade baiana. Alguns músicos exploram diálogos com ritmos afro-baianos, outros apostam em composições próprias, e há também aqueles que buscam trilhar caminhos mais acadêmicos, participando de pesquisas, intercâmbios e residências artísticas. Essa diversidade de trajetórias indica um amadurecimento da cena, que já não se limita a repetir repertórios consagrados, mas tenta construir uma estética própria, com sotaque local e potência contemporânea.
O futuro da música erudita em Salvador parece promissor. A cidade, que já é referência pela força de seus projetos de formação musical, agora se destaca também por revelar músicos negros que redefinem a cena clássica e ampliam seus limites. Seja nos palcos das grandes salas de concerto, em igrejas, em coletivos independentes ou em ensaios comunitários nos bairros periféricos, esses jovens estão escrevendo uma nova história. Uma história mais plural, mais acessível e profundamente conectada às raízes culturais da capital baiana.
E, ao contrário do que muita gente imagina, essa transformação não é um projeto distante: ela já está acontecendo, construída a cada dia pelas mãos, vozes e partituras desses músicos que vêm mudando o som — e o significado — da música erudita em Salvador.
