A data destaca a importância da luta da comunidade LGBTQ+ nas conquistas dos seus espaços numa sociedade ainda conservadora
Por Gabriel Ornelas
Revisão por Lívia Veiga
O legado de Stonewall
Antes das conquistas sociais é importante lembrar que os indivíduos LGBTQ+ eram vítimas de diversas punições antiéticas e perseguições, sob justificativas políticas e, principalmente, religiosas. Em meados de 1960, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou como transtorno mental a homossexualidade e diversos países, que já condenavam a comunidade, passaram de forma ainda mais incisiva perpetuar esse comportamento bárbaro, agora com a permissão e vigília de um órgão a nível mundial, a exemplo dos Estados Unidos.
O grande marco da luta LGBT teve um local e uma data: no bar gay Stonewall Inn, em Nova Iorque, em 28 de junho de 1969. No final da década de 1960, na região de Manhattan, era habitual o bar LGBT Stonewall Inn ser invadido por forças policiais, que motivados pelo ódio à essa comunidade violentavam os clientes e funcionários. Porém, na manhã do dia 28, tanto clientes, quanto funcionários e curiosos reagiram à violência da polícia, em um cenário que originou uma das maiores rebeliões pelos direitos civis da população LGBTQ+.
O Stonewall Inn, embora não fosse o ambiente mais agradável do bairro, era considerado um local de acolhimento a essa população vulnerável. Então, em mais um dia comum de agressão realizada pela polícia, os indivíduos ali presentes se rebelaram contra os oficiais sob som de gritos e objetos atirados, iniciando um movimento que mudaria para sempre a história da comunidade LGBTQ+.
Os confrontos não pararam naquele momento. Nos dias que se seguiram, diversos protestos contra a discriminação e o preconceito a comunidade LGBTQ+ foram realizados. Um dos mais destacáveis foi quando uma multidão irritada foi em direção aos escritórios da The Village Voice e ameaçou queimar os escritórios, após o jornal publicar matérias depreciativas sobre o movimento e seus membros.
Graças às revoltas proporcionadas no bar Stonewall Inn, seis meses depois do ocorrido surgiu a Frente de Libertação Gay, umas das primeiras organizações LGBTs a usar o termo “gay” em seu nome. Um ano depois, em 1970, ativistas convocados por Craig Rodwell, militante norte-americano LGBTQ+, fundador da Oscar Wilde Bookshop – primeira livraria voltada para autores gays – e principal ativista pelos direitos da comunidade pré-Stonewall, celebraram a data inaugurando um evento que foi chamado de Dia da Libertação da Christopher Street, atualmente reconhecida como a primeira marcha pelo orgulho LGBT.
Em 1977, Harvey Milk tornou-se o primeiro político assumidamente gay, que em sua trajetória foi responsável pela criação de leis ao combate da LGBTfobia e foi o idealizador da bandeira do arco-íris, ao escolher o design Gilbert Baker, também ativista do movimento, como criador de um símbolo para a comunidade.
O Dia Internacional Contra a LGBTfobia
O dia 17 de maio é marcado internacionalmente pela luta contra os crimes de ódio voltados a comunidade LGBTQIAPNB+ e tem como objetivos conscientizar e educar as populações sobre os direitos desses indivíduos, direitos esses violados em mais de 60 países ao redor do globo, concentrados, em sua maioria, na África e Ásia.
A data e o mês foram escolhidos como uma homenagem ao dia 17 de maio de 1990, marcada pela decisão da Organização Mundial da Saúde em retirar a homoafetividade da lista de Classificação Internacional de Doenças (CID) – apesar da transexualidade ser desconsiderada apenas em junho de 2018. Após isso estabeleceram o Comitê IDAHO, para tratar os assuntos relacionados ao combate ao preconceito de gênero e orientações sexuais.
Em 17 de maio de 2005, uma campanha organizada por 24.000 indivíduos e organizações como a Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA), a Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC), o Congresso Mundial de Judeus LGBT e a Coalizão de Lésbicas Africanas assinaram um documento em apoio ao comitê IDAHO.
A partir daquele dia o Comitê IDAHO, liderado por Louis-George Tin, presidente do conselho até 2013 e co-fundador do Conselho Representativo de Associações Negras (CRAN), criava o Dia Internacional Contra a LGBTfobia. Anos mais tarde, em 2009, a transfobia foi inserida na campanha e a França, em uma ação histórica, foi o primeiro país a retirar transgêneros da sua classificação de doenças cognitivas.
Sete anos após a criação do Dia Internacional do Combate a LGBTfobia, em junho de 2012, Louis-George ao lado de mais outros dois membros realizaram uma greve de fome como manifestação para convencer o então presidente francês apresentar à ONU uma medida que descriminalizasse a homoafetividade. Em 2015 a bifobia foi incluída na lista de discriminações.
O dia é bastante comemorado na Europa e América Latina, porém em outras regiões também é possível notar algumas celebrações, incluindo em 32 dos mais de 70 países que criminalizam a comunidade LGBTQ+. Em 17 de maio de 2019, Taiwan tornou-se o primeiro país asiático a legalizar as relações entre cidadãos do mesmo sexo.
O combate no Brasil
A primeira ação política organizada em apoio a reivindicação dos direitos LGBTs no Brasil se dar num cenário conturbado, na época da Ditadura Militar. Em 1977, João Antônio Mascarenhas, advogado e ativista gaúcho pelos direitos civis LGBTQ+ e um dos 12 fundadores do primeiro jornal abertamente LGBT, O Lampião da Esquina, realizou conferências ao lado do editor Winston Leyland, da publicação Gay Sunshine Press, revista norte-americana sobre o universo gay.
A criação do primeiro jornal abertamente LGBT, O Lampião da Esquina, por João Antônio Mascarenhas, publicado entre os anos de 1978 a 1981, durante os últimos anos da Ditadura Militar, foi fundamental para dar representatividade às pessoas marginalizadas.
A publicação, contando com 38 edições totais, possuía editoriais constantes como “Cartas na Mesa”, em que cartas dos leitores eram lidas e respondidas, “Esquina” a qual contava com notícias, “Reportagem” que concentrava a matéria colocada na capa e, a partir do número 5, a coluna “Bixórdia”. Havia também indicações de filmes, livros, shows e espaço para entrevistas.
O jornal constantemente, abordava assuntos sobre repressão e luta pela liberdade não somente da comunidade LGBTQ+, mas também de mulheres, negros e povos originários. O jornal registrou a criação de grupos ativistas no Brasil, através da seção “Conheça o Seu Ativismo”, além de documentar a questão da heteronormatividade gay, os locais importantes da Grande São Paulo e do Rio de Janeiro para a população LGBT, a perseguição aos frequentadores do cinema pornô, a perseguição e violência as pessoas trans pelo sistema ditatorial.
Também deu espaço em suas publicações à literatura lésbica de Cassandra Rios, primeira escritora nacional a escrever contos sobre lesbianismo, dedicou-se a divulgar as músicas feministas de Leci Brandão, uma das principais intérpretes do samba, a arte de Ney Matogrosso e do artista plástico LGBT Darcy Penteado.
Em 1978, outro evento da luta LGBT também marcou o país, a formação do Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, influenciado pelo jornal O Lampião da Esquina, sendo o primeiro grupo nacional de defesa LGBTQ+. A primeira reunião pública do grupo aconteceu em 1979, através de um debate na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. No mesmo ano houve a inclusão das mulheres lésbicas na formação.
Entretanto, um ano mais tarde ocorreu uma divisão entre os membros, no que origina o primeiro grupo exclusivamente lésbico: o Grupo de Ação Lésbica Feminina (GALF), com atuação direta do grupo surge o ChanacomChana, primeira publicação voltada inteiramente para assuntos sáficos. O jornal era comercializado em um bar paulista, o Ferro’s Bar, porém em 1983 essas mulheres foram proibidas de vender o folhetim, pois segundo o proprietário do estabelecimento ele atentava contra os bons costumes.
Isso gerou revoltas em frente ao local, em 19 de agosto, que terminou com militantes lésbicas lendo um manifesto dentro do bar e o acontecimento ficou conhecido como “Pequeno Stonewall Brasileiro”. Graças a isso, em 2003 foi sancionado, pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a data 19 de agosto como o Dia do Orgulho Lésbico no Brasil.
Em 1980, em meio aos surgimentos das organizações políticas, houve a chamada “Operação Limpeza” em São Paulo, chefiada pelo delegado José Richetti, que tinha como objetivo coibir a comunidade LGBTQ+, violentando seus membros. Para dar um basta a isso, uniu-se ao movimento LGBT as mulheres e a população negra, num protesto em frente ao Teatro Municipal. Foi a primeira marcha brasileira contra o preconceito de gênero e orientação.
No primeiro ano da década de 80 é oficializada a organização em prol dos direitos LGBTs mais antiga do Brasil: o Grupo Gay da Bahia (GGB), fundado pelo professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e antropólogo Luiz Mott. Porém, em 1985 a AIDS começa a se espalhar no brasil, sobretudo entre os gays, as conquistas que pareciam cada vez menos longe e o preconceito que já dava sinais de diminuição se dissolveram.
A preocupação sobre a “peste gay”, como era chamada, reprimiu os movimentos e seus integrantes e voltou a alimentar os discursos de ódio e a violência. Por consequência foi fundado o primeiro Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS (GAPA), da América Latina, ainda em atividade, que tem como objetivo promover a prevenção e assistir as vítimas da doença e seus familiares, além de garantir os direitos civis a esses indivíduos.
E é neste ano também que acontece a maior conquista do Grupo Gay da Bahia (GGB) até aquele momento, após uma petição assinada por mais de 10 mil pessoas, incluindo personalidades como o cantor Gilberto Gil e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: a substituição, pelo Conselho Federal de Medicina, da palavra “homossexualismo” por “homossexualidade”, retirando a orientação da lista de transtornos mentais cinco anos antes da OMS realizar a mesma ação.
Em 1992, mesmo fazendo parte da comunidade LGBT a população trans ainda se sentia inviabilizada entres indivíduos do próprio meio, então foi a vez dela reclamar seus direitos com a fundação da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no Rio de Janeiro, tornando-se o primeiro órgão não governamental da América Latina em prol das pessoas trans.
Suas exigências se destinavam ao reconhecimento do nome social, a regulamentação da prostituição como trabalho profissional, acesso a saúde, combate a violência, espaços justos no mercado de trabalho, educação e afins. Assim iniciava o Movimento Nacional de Travestis e Transexuais, uma das realizações mais memoráveis após isso foi a eleição da primeira travesti a um cargo eletivo no país, a ex-vereadora do Piauí: Katya Tapety.
Três anos depois, em Curitiba, em janeiro de 1995, é formada a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT), a existência dessa organização possibilitou levar e legitimar as reivindicações da comunidade ao Governo Federal e a sociedade. A ABGLT junto com o Programa Nacional, durante a década de 90, implantou o projeto SOMOS – sem ligação com o antigo Grupo Somos -, para enfretamento da AIDS e apoio aos atingidos.
Depois de tantos anos de luta, aconteceu a primeira Parada LGBT do Brasil, em 1997 no estado de São Paulo, influenciada não apenas pelas manifestações LGBTs em outros países, mas como pela passeata na Praça Roosevelt, São Paulo, em 1996, que por sua vez aconteceu um ano após a 17ª Conferência da Associação Internacional LGBT, na cidade do Rio de Janeiro, para discutir questões relevantes sobre os direitos da comunidade LGBTQ+.
A Parada, organizada por instituições de militantes gays e partidos progressistas, revelou uma força social e política desses indivíduos marginalizados, que naquele momento não tinham mais tanto receio em saírem nas ruas constrangidos por suas orientações.
Com os resultados de diversos movimentos, protestos, organizações, ativismo, anos depois, em 2008, uma grande vitória foi a disponibilização, via Sistema Único de Saúde (SUS), do processo de transexualização. No ano seguinte, o direito do uso do nome social de pessoas trans no programa de saúde foi conquistado.
Em 2011, foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a união estável entre pessoas do mesmo sexo, após dois anos a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) determinou, por jurisprudência, que os cartórios realizassem o casamento civil entre LGBTs e a portaria do SUS no mesmo ano foi atualizada, permitindo homens trans de realizarem processos cirúrgicos e a dispensa de cirurgias para travestis com acompanhamento hormonal.
Já em 2015, o STF autorizou a adoção de crianças por casais homoafetivos e um ano mais tarde a ex-presidente Dilma Rousseff decretou o uso do nome social de pessoas trans. Em seguida, no ano de 2018, foi possível realizar a alteração do registro civil por meios administrativos sem necessidade de cirurgia.
No ano seguinte foi tomada a decisão célebre, por julgamento do STF, em criminalizar e tipificar a LGBTfobia como crime de racismo, inafiançável e imprescritível. E em 2020 a doação de sangue por membros da comunidade foi aprovada.
Em 2023, a pedido da ABGLT, que havia argumentado para incluir a LGBTfobia como injúria racial, a decisão anterior do STF em criminalizar a LGBTfobia foi revisada e permitiu o reconhecimento dos atos de homofobia e transfobia como injúria racial.