O Dia Internacional do Combate à LGBTfobia levanta questões importantes acerca do movimento de resistência dessa comunidade, que a cada ano vem ganhando mais espaço na legalidade dos direitos.
Por Gabriel Ornelas
Revisão por Lívia Veiga
O dia 17 de maio é marcado internacionalmente pela luta contra os crimes de ódio voltados a comunidade LGBTQIAPNB+ e tem como objetivos básicos conscientizar e educar as populações sobre os direitos desses indivíduos, direitos esses violados em 69 países ao redor do globo, concentrados, em sua maioria, na África e Ásia. A data e o mês foram escolhidos como uma homenagem ao dia 17 de maio de 1990, marcada pela decisão histórica outorgada pela Organização Mundial da Saúde, em que se retirou a homoafetividade da lista de Classificação Internacional de Doenças (CID) – apesar da transexualidade ser desconsiderada apenas em junho de 2018 – e, então, em unanimidade estabeleceram o Comitê do Dia Internacional Contra a Homofobia (IDAHO), para tratar os assuntos relacionados ao combate ao preconceito de gênero e orientações sexuais.
Embora, somente em 17 de maio de 2005, através de uma campanha a qual originou o primeiro Dia Internacional Contra a LGBTfobia, que a data ganhou esse caráter internacional e comemorativa conhecida atualmente.
O Dia Internacional Contra a LGBTfobia
Em 17 de maio de 2005, uma campanha organizada por 24.000 indivíduos e organizações como a Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA), a Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC), o Congresso Mundial de Judeus LGBT e a Coalizão de Lésbicas Africanas assinaram um documento em apoio ao comitê IDAHO. Naquele dia diversos países presenciaram os primeiros movimentos LGBTs, como o Congo, a China e a Bulgária.
A partir desse dia o Comitê IDAHO, liderado por Louis-George Tin, presidente do conselho até 2013 e co-fundador do Conselho Representativo de Associações Negras (CRAN), criava o Dia Internacional Contra a LGBTfobia. Anos mais tarde, em 2009, a transfobia foi inserida na campanha, lançando uma nova petição com o apoio de organizações LGBTQ+ e mais de 300 ONGS de 75 países. No mesmo ano, a França, em uma ação histórica, foi o primeiro país a retirar transgêneros da sua classificação de doenças cognitivas.
Sete anos após a criação do Dia Internacional do Combate a LGBTfobia, em junho de 2012, Louis-George ao lado de mais outros dois membros realizaram uma greve de fome como manifestação para convencer o então presidente francês a apresentar à ONU uma medida que descriminalizasse a homoafetividade. Em 2015 a bifobia foi incluída na lista de discriminações.
Já no Brasil, algumas das maiores conquistas foram em 2011 quando reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a união estável entre pessoas do mesmo sexo e após dois anos a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) determinou, por jurisprudência, que os cartórios realizassem o casamento civil entre LGBTs. A portaria do SUS no mesmo ano foi atualizada, permitindo homens trans de realizarem processos cirúrgicos e a dispensa de cirurgias para travestis com acompanhamento hormonal. No ano de 2018 foi possível realizar a alteração do registro civil, por meios administrativos sem necessidade de cirurgia. Em 2019 foi tomada a decisão célebre, por julgamento do STF, em criminalizar e tipificar a LGBTfobia como crime de racismo, inafiançável e imprescritível e em 2023 o plenário reconheceu o crime como injúria racial.
No Brasil o problema ainda persiste
O Portal Avera foi em busca de um profissional acerca do assunto para explicar um pouco mais sobre as questões sociais relacionadas a comunidade LGBTQ+, na Bahia e em Salvador. O representante do Movimento LGBT da Secretaria de Justiça do Governo da Bahia e pesquisador de gênero, cultura e sexualidade, Mario Ferreira (32), uma pessoa não-binária e que já atuou na Secretaria de Educação, comentou se há algum obstáculo na aplicação das políticas públicas LGBTs por meio do governo.
“É importante entender que existem estruturas de governo e estruturas de governança, para você construir políticas públicas há um marco temporal, as leis vigentes e a construção social. Mas eu não vi dificuldades em construir políticas públicas para a comunidade LGBT, sempre existiu uma pré-disposição a isso. O grande problema é como socialmente se constrói, porque essas políticas vêm de disputa social, a sociedade pauta. Mas existiram avanços e não há grandes dificuldades, o Estado tem se atualizado para ouvir as pautas sociais presentes”.
No Brasil, atualmente, ainda é comum existir algumas práticas ilegais que diminuem a dignidade dos membros da comunidade LGBT, em vista disso ao ser questionado se a prática ilegal da famosa “cura gay”, presente no Brasil e proibida no país pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e Conselho Federal de Medicina (CFM), é realizada na Bahia e se há algum meio legal que impeça a prática, Mario afirma que para essas questões existem os aparatos legais.
“Nesse tempo que estou na Secretária de Justiça não presenciei nenhum caso. Existem as instâncias de representação dos municípios, estados, Federação. Apesar de cada um ter a sua liberdade, existem leis que se manifestam um sobre o outro. Então, se há um processo de crime para algo que é considerado ilegal e não tem cura [cura gay], automaticamente quando isso é denunciado é passado para os órgãos responsáveis para agir”.
Quando apresentados os dados preocupantes do Grupo Gay da Bahia, o mais antigo órgão de combate a LGBTfobia no país, sobre a quantidade de mortes LGBTs que chegou a 257 no último ano, em sua maioria sendo travestis, transexuais e gays, sendo dessas 22 na Bahia e 8 em Salvador, fazendo do estado o líder no Nordeste, o representante os analisa e pondera uma preocupação acerca deles.
“Existem ações sendo tomadas para evitar essas fatalidades, até porque o número pode ser bem maior, pois há os casos não notificados. A gente fortalece movimentos LGBTs em toda Bahia, a gente faz letramento à população para valorização da comunidade LGBT, há ONGs, há um processo para interiorizar esse tema. Existe, por exemplo, a Caravana de Direitos Humanos da Secretaria de Justiça, em que há discussões sobre mercado de trabalho, acesso à educação. Cada secretaria tem pelo menos uma comissão voltada a comunidade LGBT, como cultura, turismo etc”, apontou Mario.
“Já em relação à Bahia liderar esses dados, podemos pensar nos contextos culturais que surgem nos lugares, o acesso a informação, essas coisas vão dizer muito de como as pessoas encaram as realidades. Têm regiões na Bahia que existe um avanço no debate, enquanto outra são mais difíceis, mas enquanto não infringir nenhuma lei o que se pode fazer são normas pedagógicas”, concluiu o representante.
Embora o Brasil seja o pais mais mortal para essa comunidade, sendo pela 15ª vez o líder em mortes trans, de acordo com Transgender Europe (TGEU), também é o maior consumidor de pornografia trans, segundo relatório do PornHub. Mario define isso como um paradoxo e em suas palavras “algumas das ações realizadas por nós é entender que não há hierarquia de opressão, porém há corpos que socialmente são mais marginalizados. Há corpos que precisam de oportunidades no mercado de trabalho. Existe, também, uma construção social confusa acerca do que é sexualidade e gênero. Quando um homem cis diz que está em um relacionamento com uma mulher trans, há todo um alvoroço. É um problema sério, além da transfobia existe a questão sobre a construção do imaginário popular, afinal nossa sexualidade também é construída socioculturalmente”.
Mas para Mario nem tudo são apenas dificuldades, durante esse tempo atuando frente a causa LGBT na Bahia ele admitiu ter visto inúmeras conquistas e progresso.
“O Movimento LGBT na Bahia é bem aguerrido, ele é muito bem conhecido e visto no país inteiro. Tanto que sempre ao chegarmos nos lugares as pessoas perguntam ‘o que a Bahia está trazendo?’, ‘olha a Bahia está num evento, queremos ouvir a Bahia’. A militância LGBT baiana é muito bem qualificada, tanto a nova geração quanto a vanguarda, há um histórico no debate, diálogo”, finalizou Ferreira.
Através de alguns olhares resistentes da Bahia
O Portal Avera também foi em busca de personalidades LGBTs baianas estabelecidas, na cidade de Salvador, para falarem um pouco dos seus desafios enquanto indivíduos dessa comunidade. A primeira, uma multiartista soteropolitana, performer e DJ da cena LGBT da Bahia, mãe da Casa Criola, uma das principais do cenário ballroom baiano e atual Rainha do Carnaval LGBTrans de Salvador, Nola Criola (25), cita a importância da luta trans para a comunidade.
“A partir da luta das pessoas trans houve uma abertura maior para o entendimento sobre esses indivíduos e as políticas públicas ajudaram a dar apoio a esse movimento”. Em suas palavras, “isso precisa continuar sendo uma tendência”.
Quando perguntado a ela do momento mais importante enquanto cidadã e artista da cena, a mãe da Casa Criola diz com toda certeza e orgulho “que foi no momento do nascimento de sua casa, no ambiente da ballroom, pois, segundo Criola, ela pôde se colocar como ponto de encontro e cuidado de diversas pessoas”.
Porém, ela revela que nem tudo são flores, mesmo com esse progresso ainda há dificuldades para encontrar alguns meios de representatividade por via dos contratantes.
“Há um caminho árduo para os contratantes valorizarem e entenderem a nossa arte, há uma desvalorização e marginalização, mas que com diálogos a mudança desse cenário pode continuar”, explica a DJ.
Já para a segunda entrevistada, Lira Reis (26), que trabalha como estoquista na Loja Adidas de um dos shoppings centers da capital e, também, uma das principais DJs não-binárias da cena LGBT de Salvador, ex-drag queen e performer, a luta LGBT “ajudou em parte a minha conquista enquanto artista, pois a minha carreira artística começou como drag queen, eu me entendia como homem gay, cis gênero. Hoje como uma pessoa não-binária, de três casas que eu andei para frente, duas eu andei para trás, porque não tinha mais aquela produção da arte drag. Alguns contratantes me queriam mais pelo meu visual somente”.
Ela também esclarece que dentro da comunidade há um individualismo entre os próprios membros que compromete a luta.
“É complexo, porque a comunidade não-binária vem crescendo, estamos ocupando muito mais espaços que antes, mas ainda há uma resistência principalmente em acreditar em que somos. Enquanto não-binário, no meu caso eu sou uma pessoa agênero, eu atendo por todos os gêneros, e então as pessoas colocam a gente nesse lugar de confusão, que não é verdade”.
Uma questão novamente tocada na matéria foi sobre o alto consumo de pornografia trans dentro de um pais altamente mortal para essa população, afinal, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. De acordo com Lira, essa contradição existe e deve ser combatida.
“É babado e não é babado bom, principalmente quando se fala de vida, as pessoas trans por serem marginalizadas, acredito que não só a mim, mas como todas as outras merecemos um pouco mais de atenção, há muito que correr ainda, as pessoas precisam se informar, abrir mais espaço para as pessoas trans mostrarem a realidade que não é fácil. Já vem mudando né? A gente ver pessoas trans em lugares importantíssimos. Porém, a mídia precisar colocar mais em pauta e o governo humanizar essas pessoas”.
Tanto para Lira, quanto para Nola é importante continuar investindo na cultura LGBT, porque isso demonstra uma questão de legado e ancestralidade, inclusive para as novas e próximas gerações.
“O entendimento de legado é saber quem veio antes e abraçar aquilo, com respeito, carinho, admiração, é uma coisa que não para, ela é viva. É importante essa corrente de continuidade”, disse a atual Rainha LGBTtrans. “Consumam, leiam, assistam, um like na arte LGBT já ajuda muito, compartilhem de inúmeras formas. O legado que eu quero deixar é que embora a gente se perca no caminho, uma hora vamos se encontrar se nos concentrarmos em quem somos, se valorizem e a marca de vocês vai ficar”, completa a DJ Lira Reis.